Ecológicos até a página 2

por Malu Fontes

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Publicado em 3 de dezembro de 2018 às 05:30

- Atualizado há um ano

Que a Primavera Árabe acabou desaguando numa radicalização dos regimes autoritários e ditatoriais na região, ninguém duvida. Os protestos nas ruas em 2013, no Brasil, aparentemente iniciados pela insatisfação dos jovens paulistanos com um reajuste de 20 centavos nas passagens do transporte público, deram no que deram. De protesto contra o reajuste de passagens, evoluiu para uma onda de intolerância aos níveis de corrupção no país, para o ódio aos partidos políticos. Chegou-se ao impeachment de Dilma Rousseff e daí para a emergência de uma extrema direita brasileira, que dormia, acordou vigorosa e chegou ao poder pela via do voto, foi uma piscada de olhos.

Agora, quem está no olho do furacão espremido por um fenômeno semelhante é o até ontem incensado Emmanuel Macron, o bonitão presidente francês, até ontem com quase 70% de aprovação popular e agora despencando nas cordas e caindo para a casa dos 20%. O que se chamou de Primavera Árabe no Egito e de Protestos de 2013 no Brasil, acaba de desembarcar nas ruas da França e no coração de Paris como a hashtag #giletsjaunes, os “coletes amarelos”. Os movimentos, claro, são diferentes em seus respectivos conteúdos, pois um país não copia a realidade do outro, mas na forma são parecidíssimos. 

Basta  A Champs Elysées, um dos metros quadrados mais famosos do mundo, o coração da idealizada Paris, vem tendo que trocar nas últimas semanas o glamour das grifes e o romantismo do turismo internacional por bombas de gás lacrimogênio, gente sangrando, carros tombados queimados, gente morta, manifestantes desmaiados, centenas de feridos e policiais avançando sobre franceses encolerizados, tanques militares espirrando jatos violentos de água para conter manifestantes. A causa exata do ódio todo é difusa, como na Primavera Árabe e nos Protestos de 2013, mas no final tudo parece se reduzir a um basta: estamos cansados e odiamos os partidos políticos. Estamos desempregados, não temos poder aquisitivo e vamos destruir tudo ao nosso redor. 

A intenção de Macron era nobilíssima e claríssima: ampliar a tributação da gasolina para o consumidor final em 2019 e reduzir a frota de carros nas ruas e deixar o ar mais puro. Faltou combinar com os franceses, que, sem lideranças políticas, foram para as redes sociais convocar para os protestos, o #giletsjaunes. Os tais coletes amarelos são itens obrigatórios de um kit de emergência que os franceses precisam comprar e ter nos carros. Uma espécie de versão ampliada do que o Brasil teve um dia, o ineficaz kit de primeiros socorros. Lembram?

Valeu, boi Numa semana em que aqui na província soterópolis o povo ficou tocado e emocionado por frases do tipo “valeu, boi”, talvez valha a pena recomeçar a semana prestando atenção no modo francês de reagir à realidade. Naqueles carros queimados, nas pessoas mortas e nas centenas de feridos parece estar o desenho real do que vem por aí para definir como será e qual será o mundo logo ali em frente. É todo mundo ecológico, todo mundo ama os animais e todos dizem querer viver num planeta mais ambientalmente puro e mais limpinho que aquele paraíso onde Eva aceitou uma maçã de uma cobra e parece que estragou tudo. 

Na prática, esse ambientalismo limpinho todo não chega à página dois do livro da existência confortável das classes médias e ricas. Foi Macron anunciar um aumento na tributação de gasolina, para retirar carros das ruas e estradas e purificar o ambiente francês, e deu no que deu. Paris está sendo literalmente incendiada, pois o que todo mundo quer é carro e gasolina baratos para usufruir dos prazeres e continuar dando de ombros à sustentabilidade de hashtag. A ecologia? É só mais uma hashtag que deixa nossa imagem mais bonitinha nas redes sociais. Aproveitem e (re)vejam a “trilogia Qatsi”, os três documentários, sem diálogos e com música, de Phillip Glass, dirigidos por Godfrey Reggio. Vejam sobretudo Koyaanisqatsi, uma vida em descontrole, de 1982. Sorry, mas o futuro do planeta é aquilo: tecnologia, desequilibro e dor humana. O resto? Dificilmente passará de ativismo de hashtag ou de indústria do bem para fazer bonito na fita no Instagram. Pena que a realidade está aí para estragar tudo. A realidade é os gilets jaunes.