Ele cuida bem de você?

por Flávia Azevedo

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Publicado em 2 de setembro de 2017 às 10:01

- Atualizado há um ano

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Tinha lagosta com alcaparras, vinho branco e a luz dourada da cidade da Bahia. Ele era lindo, baiano, dengoso e me chamava de "gracinha", assim, como se fosse meu nome. E eu ia, todas as vezes. Apaixonada, entregue, molinha, andando nua por aquele país. No meu coração, batucada, amor puro, dengo forte, um infinito de "sims". Nó na garganta só de ver, só de ouvir aquele moço e seu riso, seus "vems", seus assobios na beira do mar. 

Um dia, ele ficou mais romântico e propôs um brinde. O riso iluminado cada vez mais perto, um beijo longo. Eu pensava Caetano ("oh, neguinho, deixe eu gostar de você") quando ele escolheu sussurrar Vinícius pra mim. Meio cantarolado, meio dito, comecei a escutar "se você quer ser minha namorada , ah que linda namorada você poderia ser". 

Ele não estava brincando, mas vacilou na hora de dizer "só ter um pensamento, ser só minha até morrer". Eu comecei a rir. "Escolhi a música errada, não foi?", ele falou, antes da nossa gargalhada juntos. E brindamos o nosso namoro solar, a nossa decisão implícita de que tudo continuaria assim: sem culpas, sem nome, sem cobrança nenhuma. E foi. 

Aquele amor, pra mim, foi desabrochar. Eu tinha 19 anos, quando começou. Foi ele quem me ensinou a curtir o meu corpo, a buscar meu prazer. Foi com ele que eu aprendi a dizer como gosto, a tomar banho junto, a nadar nua no meio do mar, a cochilar deitada na retranca da vela grande enquanto o veleiro "Júlia" vinha ou ia pra Garapuá. 

Foi com ele que eu aprendi como gosto de ser tratada. E a não aceitar nada menor. Foi com ele que descobri um sexo leve e feliz. E que eu posso dizer sim ou não dependendo, apenas, da minha vontade. Foi com ele que, logo cedo, eu elevei meu padrão. Com ele, numa relação aberta e não em um casamento tradicional. Com ele, numa relação não oficial. Com ele, na contramão das convenções. Com ele, no nosso namoro possível. Ele nunca me deu nem teve exclusividade. Ele nem foi, oficialmente, meu namorado. 

Um acidente levou Cacau, alguns anos depois. Não estávamos mais juntos, mas estaríamos sempre, de muitas maneiras. Não deu tempo de sermos os "amigos da vida toda" que planejamos. Ele, obstetra, não viu meu filho nascer. E eu sempre acho que teria parido normal se ele estivesse aqui. A gente tinha combinado assim. Cláudio era especialista em parto domiciliar. 

Ele gostava de grávidas e achava mulher parindo a coisa mais linda do mundo. Dizia que era bom botar a periquita no sol, que os pêlos tinham função, que o corpo refletia emoções e perguntava se eu tava chateada com ele, se eu começasse a me coçar. Se amarrava em me ver gargalhando e dizia que nunca tinha visto alguém mais feliz. E eu estava mesmo, com ele ali.

(Que delícia é um homem que não tem medo de fêmea, que não tem nojo dos fluidos, que mergulha em peitos, pêlos e gargalhadas. Que presente é um homem que anda do nosso lado, que gosta de mulher, de fato).

Desde que nos despedimos, tive um casamento e muitos namoros. Alguns amores de verdade e umas coisas que deram errado. Vida, enfim. Seguiu o baile. Mas Cacau segue comigo, até hoje. Um amor amuleto materializado no porta incensos que ainda tenho no quarto, nos bilhetes que ainda guardo, no assobio que era dele e, vez ou outra, eu faço sozinha, só pra escutar. 

Um amor que revive cada vez que repito, pra mim mesma, a cada nova história, a pergunta que ele me fez quando eu contei que tava namorando outro cara: "ele cuida bem de você"? Eu estava terminando nosso "rolo", eu estava com outro homem, eu disse tudo com todas as letras, mas era só isso que ele queria saber. 

Semana passada, fez vinte anos que ele morreu. Nos últimos dias, li muitos relatos de mulheres abusadas, sacaneadas, agredidas por homens bizarros. Daí, me deu vontade de dividir o "presente pergunta", o " escudo pergunta" que Cacau me deu. Em vez de uma cena de ciúmes, a super mensagem de amor: "precisa ser bom pra você. Você precisa estar feliz". Ele estava comigo. Profundamente. E eu com ele. Era verdade e cuidado, era amor sim. E muito novinha eu aprendi, no abraço e no colo dele, a amar e respeitar a mulher que eu começava a ser. 

(Ele cuida bem de você?)

(Se sim, cuide bem dele também)

(Amor não dói, não mata, não machuca ninguém)