Elza Soares apresenta seu primeiro álbum de inéditas em mais de seis décadas de carreira

No álbum 'A Mulher do Fim do Mundo', Elza canta sobre sexo, drogas e negritude

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  • Laura Fernades

Publicado em 16 de novembro de 2015 às 17:36

- Atualizado há um ano

(Foto: Stephane Munnier/Divulgação)Aos 78 anos, com mais de seis décadas de carreira e limitações físicas naturais da idade, eis que a cantora carioca Elza Soares surge com seu primeiro álbum de inéditas: A Mulher do Fim do Mundo (Circus/Natura Musical). O expressivo título do disco - cujo show virá para o Teatro Castro Alves no dia 23 de janeiro - dá uma pista do que esperar do novo trabalho de uma das maiores cantoras da MPB.

“A mulher do fim do mundo é uma mulher guerreira, que enfrenta chuva, sol. Que não tem tempo ruim”, explica o vozerão de Elza, ao telefone. Se identifica? “Completamente. Pra mim, nunca teve tempo ruim”, responde a artista que começou pobre, ganhou o mundo com sua voz, enfrentou preconceito, violência doméstica, cirurgia na coluna e a perda de três filhos. Só para citar alguns dos dramas que marcaram sua vida.Mas, citando a própria Elza e a música que dá nome ao disco, ela é a mulher guerreira que vai “cantar até o fim”. Assim caminham as letras de diferentes compositores, feitas exclusivamente para a musa inspiradora, que refletem sua ousadia: Elza canta a violência contra a mulher, a negritude, o crack, sexo e outros temas, além de um poema de Oswald de Andrade (1890-1954) musicado por Zé Miguel Wisnik.“A Elza é uma artista ousada. Os artistas se inspiram nela e a primeira coisa que vem em mente é a ousadia. Ela é instigante, não é acomodada. Está sempre com visão pra frente. Nada espanta ela”, elogia o baterista carioca Guilherme Kastrup, 46, que idealizou e produziu A Mulher do Fim do Mundo.QuímicaElza é a voz e a musa. O disco, porém, reflete um trabalho que vai além da intérprete e diz respeito à idealização e produção, guiados por Kastrup. O embrião foi o show de lançamento do disco EslavoSamba do músico e historiador Cacá Machado, em 2011, quando Kastrup, Elza e músicos de destaque da nova cena paulistana reuniram-se no mesmo palco.Elza Soares aparece no show com cenário assinado por Anna Turra e que chega ao TCA no dia 23 de janeiro(Foto: Alexandre Eça/Divulgação)A química do show foi forte. “A partir dessa música, a gente sentiu que precisava fazer uma coisa juntos. Foi muito rico o resultado do grupo com ela”, justifica Kastrup. Daí a ideia de gravar um disco com e para Elza, junto a músicos como Kiko Dinucci, Marcelo Cabral, Rodrigo Campos e Felipe Roseno, além de Rômulo Fróes e Celso Sim, que assinam a direção artística. Sensível e ousado, A Mulher do Fim do Mundo mistura samba, rock, rap e eletrônico, em arranjos vanguardistas. De um lado, o disco explora a dramaticidade em instrumentos de cordas como cello e violino e, do outro, equilibra a ousadia quase moleque da artista que dá voz frases como “eu tô de bob”, “pra fuder”, “ela leva o cartucho na teta” e “a poliça, a miliça e o choque”.Sexo e negritudeNão foi difícil para a cantora comprar a ideia do grupo de músicos e embarcar nesse desafio. “Você tem que descobrir o novo, não pode ficar parado no ‘só eu existo’. E não foi difícil não, porque são bons demais. Eles te levam, são artistas fantásticos”, entrega Elza.Ao ser questionada pelos compositores sobre o que queria falar, ela não hesitou: “sexo e negritude”, lembra Kastrup. Isso norteou as mais de 50 composições de onde foram selecionadas onze para o disco. Entre elas, vale ressaltar Maria da Vila Matilde (Porque se a da Penha é Brava, Imagine a da Vila Matilde), composta por Douglas Germano.“Cadê meu celular?/Eu vou ligar prum oito zero/Vou entregar teu nome/E explicar meu endereço/Aqui você não entra mais/Eu digo que não te conheço/E jogo água fervendo/ Se você se aventurar/(...) Cê vai se arrepender de levantar / a mão pra mim”, diz a letra, com sarcasmo. Cantora carioca aparece ao lado do produtor Guilherme Kastrup e entre músicos de destaque da cena paulistana, que hoje integram bandas como Passo Torto e Metá Metá(Foto: Divulgação)Não dá para passar imune à temática, diante de um Brasil como quinto país do mundo em ranking de violência contra a mulher e de uma vítima guerreira, como a própria Elza, que viveu um tumultuado casamento com o jogador Mané Garrincha (1933-1983).“A música é uma denúncia, é você explicando como deve ser feita a coisa. Ainda existe covardia e tem que denunciar mesmo, tem que gritar e não permitir que isso aconteça. Às vezes não é nem o físico, é a palavra, aquela coisa horrorosa. Aquilo é a maior covardia que existe”, brada a cantora.Dura na quedaMulher de atitude, Elza leva esse espírito para o show. O problema de coluna transforma-se em cenário e figurino dignos de diva, assinado pela paulista Anna Turna, onde Elza reina sentada ao lado de 14 músicos (que viajam na turnê em diferentes formações). “A limitação é só da locomoção, mas ela é extremamente forte. Elza não tem preguiça de nada, não tem corpo mole. Dá um baile em muito garotão em força de vida”, destaca Kastrup. “Sou muito ousada mesmo, mas sem ser esnobe. Ousada na maneira de buscar a vida”, diverte-se Elza. “Estou com a coluna ferrada, mas não tem problema não, é a voz que canta”.

Hagamenon Brito: Dura na queda, Elza tem a força Elza Soares, 78 anos, é a mulher. Primeiro álbum 100% com canções inéditas de sua longeva e brilhante carreira, A Mulher do Fim do Mundo (Circus/Natura Musical) reitera a força do canto da artista que já passou por poucas e boas nesta encarnação, mas que, dura que é na queda (como bem atestou Chico Buarque), sabe dar a volta por cima.

Desta vez, Elza surge com um dos melhores álbuns nacionais de 2015 ao lado de um grupo de músicos da nova vanguarda musical paulista, que a elegeram como a intérprete ideal para suas canções sobre a vida urbana de São Paulo, canções feitas especialmente para a voz e a personalidade artística da homenageada.(Foto: Reprodução) É difícil imaginar outra veterana da MPB cantando versos como "Ela leva o cartucho na teta/Ela abre a navalha na boca/Ela tem uma dupla caceta/A traveca é tera chefona" (Benedita), um samba noise poderoso de Celso Sim (que faz participação vocal) e Pepê Mata sobre um travesti rei do crack, com arranjo de metais da banda Bixiga 70.

O mesmo naipe de metais enriquece a dançante Firmeza?!, com participação vocal especial de Rodrigo Campos e influência afro-beat; e Pra Fuder, petardo que transpira e inspira sexo a partir do título. A química entre Elza e os músicos da nova geração, com produção impecável de Guilherme Kastrup, flui muito bem porque a cantora continua olhando pra frente, aberta a novos sons e sem ficar presa ao passado.

A faixa-título, uma pérola de Romulo Fróes e Alice Coutinho, soa autobiográfica na voz de Elza: "Meu choro não é nada além de Carnaval/É lágrima de samba na ponta dos pés.../Mulher/Do Fim/Do mundo/Eu sou/Eu vou/Até o fim/Cantar". Artista de black music, de jazz, que canta samba (porque o samba é tudo), Elza é um tipo de intérprete old school cada vez mais rara na MPB: visceral, emocional e sem medo.