Em Narciso em Férias, Caetano relembra os dias que passou preso

Documentário chega ao Globoplay nesta segunda (7)

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  • Roberto Midlej

Publicado em 4 de setembro de 2020 às 06:00

- Atualizado há um ano

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Quando esteve preso por 54 dias, em 1968, Caetano Veloso passou todo aquele tempo sem poder olhar-se no espelho. É daí que surge o título do documentário Narciso em Férias, que chega ao Globoplay nesta segunda-feira, dia 7. Na véspera, começa a primeira das três exibições do filme no Festival de Veneza, uma delas na principal sala do evento, na mostra Out of Competition.

O longa tem direção de Ricardo Calil e Renato Terra, com produção de Paula Lavigne e coprodução da Videofilmes, de João Moreira Salles e Walter Salles. Calil e Terra já haviam dirigido juntos um outro documentário, Uma Noite em 67 (2010), sobre o Festival de Música Popular Brasileira de 1967.

A prisão de Caetano aconteceu no dia 27 de dezembro de 1968, quando o cantor foi retirado de sua casa, em São Paulo, por agentes do regime militar que estavam à paisana. Naquele mesmo dia, Gilberto Gil também foi preso. Nenhum dos dois recebeu explicações sobre os motivos da detenção e os jornais foram impedidos pela censura de divulgar a notícia. Inicialmente, Caetano foi para uma solitária no Rio de Janeiro e uma semana depois foi transferido para outra cela.“Eu tinha que comer ali no chão mesmo. Isso durou uma semana, mas pareceu uma eternidade. Eu comecei a achar que a vida era aquilo ali. Só aquilo. E que a lembrança do apartamento, dos shows, da vida lá fora era uma espécie de sonho que eu tinha tido. Me lembro muito de uma frase que o Rogério Duarte [artista gráfico tropicalista] me disse logo que eu fui solto: 'Quando a gente é preso, é preso para sempre'. Acho que é assim mesmo”, afirma Caetano em um dos depoimentos para o filme. Os cabelos de Caetano foram raspados quando ele foi preso, como mostra o pôster Cabelos Como mostra o cartaz do filme, Caetano teve os cabelos raspados quando foi preso. O músico detalha como foi: “Eles me tiraram da cela e disseram: ‘Ande em frente e não olhe para trás!’. Eu pensei que eles iam atirar. Mas eles me levaram no barbeiro. Eu tinha um cabelo grande, todo cacheado, grandão, e eles cortaram meu cabelo. Eu fiquei feliz porque não ia morrer, e eu não podia nem demonstrar a minha felicidade, adorando aquele barbeiro cortando o meu cabelo. Eles cortaram como se fosse um soldado, rasparam na lateral, deixaram baixinho em cima, depois me levaram de volta”.

Segundo Caetano, o cabelo longo tinha um significado simbólico de liberdade e, por isso, lamenta ter sido obrigado a cortá-los. "Mas eu estava feliz porque não me mataram”.

Renato Terra ressalta que João Moreira e Paula Lavigne foram fundamentais para que o filme fosse concretizado.“Conheci o João há 12 anos e, por causa dele, convivi com Eduardo Coutinho [diretor do documentário Cabra Marcado Para Morrer]. Cada decisão que tomei no projeto veio desse aprendizado com João e Coutinho. A Paula teve a iniciativa do filme e, desde o convite, apoiou todas as decisões que tomei, confiou, me deu confiança”.

Calil celebra a estreia em Veneza: “Estamos felizes e honrados de iniciar a trajetória do filme pelo Festival de Veneza, que é ao mesmo tempo o primeiro festival de cinema do mundo e o primeiro que será presencial no mundo pós-pandemia. É um evento histórico que pode apontar como será o cinema nessa nova realidade”. “O filme fala do passado do Brasil, por meio das memórias de Caetano Veloso sobre sua prisão na ditadura, mas também tem muito a dizer sobre o presente do país”, acrescenta Calil. Renato Terra e Ricardo Calil, os diretores “A beleza deste filme está na maneira como Caetano Veloso, o artista em questão, hoje com 77 anos, é capaz de nos levar de volta àquela cela e nos fazer partilhar da impotência do rapaz preso. A simplicidade da encenação - um homem sentado de pernas cruzadas diante de uma parede de concreto, nada mais - dá voz ao essencial, uma escolha ao mesmo tempo estética e moral. Diante da violência, qualquer excesso seria injustificado. Este é um filme sobre o Brasil de antes e talvez de amanhã. Os fantasmas continuam entre nós”, analisa João Moreira Salles.

Na carona do documentário, a Companhia das Letras vai lançar nos próximos dias o livro Narciso em Férias. Originalmente, esse era também o título dado por Caetano ao capítulo sobre a prisão em seu livro Verdade Tropical (1997). Agora, o capítulo será publicado como um livro à parte, acrescido de uma seleção dos documentos da ditadura militar sobre Caetano, descobertos pelo pesquisador Lucas Pedretti. Esses documentos também aparecem no filme e alguns são comentados por Caetano.