Em novo álbum de inéditas, Caetano mostra que sua obra é uma necessidade

Meu Coco, primeiro trabalho de estúdio de Caetano desde 2012, chegou nesta quinta (21) às plataformas de música

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  • Roberto Midlej

Publicado em 21 de outubro de 2021 às 22:43

- Atualizado há um ano

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A  pergunta que fazemos depois de ouvir Meu Coco, o novo álbum de Caetano Veloso (Sony Music), lançado nesta quinta-feira (21) nas plataformas de música, é: por que ele demorou tanto para dizer coisas tão necessárias? Por que tivemos que esperar nove anos para ouvir novas composições dele? Não é só a música brasileira que precisa dele. O país precisa de suas ideias e de suas canções, especialmente num momento sombrio como o que vivemos hoje, com mais de 600 mil vidas eliminadas por uma doença.

Se, por uma lado, na música Anjos Tronchos - single lançado no mês passado -, o compositor revela ceticismo ao constatar que as redes sociais deram espaço ao surgimento de governos autoritários de extrema direita, por outro, Caetano, em Sem Samba Não Dá, festeja a música brasileira e a geração recente de cantores e cantoras populares, como Marília Mendonça, Ferrugem e Simone e Simaria, que costumam ser desprezados pela crítica.

“Desde o tropicalismo, em 1967, vimos olhando com olhos livres o que surge de modo vital na cultura de massas”, diz o compositor, em entrevista por e-mail ao CORREIO. É bom lembrar que ele já gravou compositores “bregas”, como Peninha (Sonhos e Sozinho) e Fernando Mendes (Você Não Me Ensinou a Te Esquecer).

Mas é impossível não se angustiar com Anjos Tronchos, que, segundo o próprio Caetano, tem um “tom sombrio”. Mas a internet fez surgirem coisas boas também, como a cantora Billie Eilish, citada na canção: “Miss Eilish faz tudo do quarto com o irmão”, diz o compositor, se referindo à maneira caseira como a americana produziu suas primeiras canções.

Sempre atualizado, Caetano gosta de levar para suas canções o que acontece no mundo. E é assim com Enzo Gabriel, faixa cujo título remete ao nome que, durante alguns anos, foi o que mais esteve presente nas certidões de nascimento brasileiras. “Enzo Gabriel/ Qual será teu papel/ Na salvação do mundo?”, pergunta a essa geração. E dá a ela um recado: “Sei que a luz é sutil/ Mas já verás o que é nasceres no Brasil”.

Neste retorno ao estúdio, Caetano está acompanhado por alguns dos maiores músicos do país, como o bandolinista Hamilton de Holanda, o sanfoneiro Mestrinho e os arranjadores Jaques Morelenbaum e Letieres Leite. O percussionista baiano Marcio Victor, vocalista da Psirico, volta a gravar com Caetano, na faixa Ciclâmen do Líbano.

Das 12 canções de Meu Coco - todas compostas por Caetano, sem parceiros -, três haviam sido registradas antes: Pardo, que Céu gravou em 2019; Autoacalanto, que Caetano apresentou numa live; e  Noite de Cristal, conhecida na voz da irmã Maria Bethânia. 

Nesta conversa com o CORREIO, Caetano, além de falar sobre seu novo álbum, lembra dos tempos que viveu em Londres e diz como é a sua relação - ou, no caso, a não relação - com as redes sociais. E quando o repórter pergunta ao compositor o que significa, afinal, nascer no Brasil, Caetano limita sua resposta a uma palavra: “Tudo”. Vindo de outra pessoa, poderíamos desconfiar que é preguiça ou má vontade de responder. Mas, vindo dele, tem um significado enorme. Significa ser reconhecido como um dos artistas mais importantes da nossa história e também ser odiado por uma parte dos brasileiros que se limita a chamá-lo de “comunista”

Em "Meu Coco", João Gilberto volta a ser citado numa música sua. Este é o primeiro álbum de inéditas que você grava após a morte dele. Como recebeu a notícia da morte dele e o que ele significa para você? 

João Gilberto é o artista brasileiro, de qualquer área, que mais me encantou, ensinou e sugeriu. Eu estava fora do Brasil quando ele morreu. Ao contrário do que pude fazer com Caymmi, não pude ir ao seu funeral. 

"Anjos Tronchos" fala basicamente sobre a internet e as redes sociais. Como é sua relação com esses dois itens? Vê as pessoas viciadas neles? E você se considera "dependente"? 

Não olho redes sociais. Nem consigo sentir o peso a que as pessoas se referem quando contam que alguém está sendo "linchado", foi "cancelado" ou tornou-se um grande influenciador.Sou velho e esse mundo é bastante irreal pra mim. Sei que muitas pessoas são viciadas em tablets e smartphones. Mas eu estou longe de me viciar mesmo no meu laptop, onde só olho emails e algo no YouTube. Ainda em "Anjos Tronchos", você diz que "palhaços líderes brotam macabros, munidos de controles totais". Como vê essa ascensão da extrema-direita no Brasil e no mundo e qual a responsabilidade das redes sociais nisso? 

Sem dúvida, as redes sociais forma determinantes para o surgimento do fenômeno global da extrema direita. A maioria silenciosa virou uma turma ruidosa e histérica. Isso denota uma certa sensação de fraqueza por parte dela. Mas não nos livra dos riscos nem das passíveis ondas de turbulência pelas quais podemos ter de passar. 

Embora você seja considerado um compositor sofisticado, de formação intelectual, sempre se manteve muito próximo da cultura popular. Tanto que em "Sem Samba Não Dá", você cita Maiara e Maraísa, Ferrugem e Simone e Simaria. Também já gravou Peninha e Fernando Mendes. Acredita numa separação entre o "sofisticado" e o "popular"?

Desde o tropicalismo, em 1967, vimos olhando com olhos livres o que surge de modo vital na cultura de massas. É um reconhecimento do verdadeiro lugar que ocupamos os autores de canções e uma vontade de detectar as forças que se movem de forma eficaz na mente coletiva.  Passados 50 anos da sua chegada a Londres, como avalia a sua experiência na cidade? Que legado ela deixou para você e o que acha da obra que produziu enquanto estava lá? 

Londres pra mim foi parte da prisão. Nunca quis viver fora do Brasil. Só comecei a gostar de Londres em 1971 (cheguei lá em 1969) e em 1972 já estava de volta e morando na Bahia. Gravei dois discos lá, ambos reconhecidos como relevantes pelo público brasileiro. Gostei de gravar "Transa" com Macalé, Tutti Moreno, Aureo de Souza e Moacyr Albuquerque.Hoje, penso em Londres com algum carinho, nenhuma saudade e nenhuma vontade de saber se minha música é ouvida por quem quer que seja lá. Penso em quem me ouve nos EUA, na Espanha, na Itália... Na Inglaterra, não. Maria Bethânia foi eleita recentemente para a Academia de Letras da Bahia e alguns reagiram ao nome dela, já que não tem uma obra extensa como escritora/compositora. Alguns até disseram que você deveria ser escolhido. O que acha de uma Academia escolher uma intérprete como membro? 

Acho bonito e bom para a Academia que Bethânia esteja lá. Como tropicalista, sou o último a achar que academias não deveriam acolher cantores populares.  

Em entrevista a Pedro Bial, você disse que tende "a respeitar, pelo menos", os estados socialistas e que hoje é menos "liberaloide" que antes. Disse também que não "engole" mais a equalização entre extrema direita e extrema esquerda. Mas ambos não recorrem igualmente ao autoritarismo e à perseguição aos adversários? 

Não gosto de autoritarismo nem de estados opressores de nenhum lado do espectro político. Numa entrevista com Jones Manoel, eu disse que se vivesse num país comunista eu seria um dissidente. Mas as motivações que levam à criação de estados socialistas são natureza diferente das que produzem nazismo e fascismo. Tentar igualar é argumentar a favor da direita. Li Hanna Arendt há muitos anos e gostei. Mas li Losurdo há dois anos e achei a crítica dele ao que ela diz certeira.  

Em "Autoacalanto", você fala de Benjamin, seu neto mais novo. Como é sua relação com seus netos? Você é um avô que brinca, se envolve com eles? O que é melhor: ser pai ou avô? 

Ser pai é experimentar algo com que eu nem sonhava quando era novo. O nascimento de Moreno foi o mais importante acontecimento de minha vida adulta. O nascimento de meus netos é uma coisa bonita e comovente. Mas o que dá peso a isso é o fato de eles serem filhos de meus filhos. Calhou de Benjamim, por causa da pandemia, viver seus primeiros meses aqui em casa. Tive convivência diária com ele como não tive com Rosa e José, os filhos de Moreno, meninos que também adoro e com quem tive os momentos mais felizes de meu aniversário este ano. 

"Enzo Gabriel" soa como um recado para essa geração batizada com esse nome que foi o mais popular do país por um tempo. Nela, você diz "já verás o que é nasceres no Brasil". Para você, o que significa nascer no Brasil ? 

R - Tudo.