Emanoel Araújo chega aos 80 anos ignorando aposentadoria

Baiano de Santo Amaro alia bem sucedida carreira de artista plástico e gestor de museus como a Pinacoteca de São Paulo e Museu Afro Brasil

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  • Ronaldo Jacobina

Publicado em 15 de novembro de 2020 às 16:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Andrea Fiamenghi/ Especial para o Correio

No começo dos anos 1980, Emanoel Araújo foi chamado pelo então governador Antônio Carlos Magalhães para assumir a direção do Museu de Arte da Bahia. “Que ideias você tem para o MAB?”, perguntou ACM. O artista plástico discorreu sobre coisas que havia pensado e lançou: “Quero levar o museu do bairro de Nazaré para o Corredor da Vitória”. 

O político o encarou espantado e disse-lhe na tora: “Você não serve, você não é humilde!”, e deu a conversa por encerrada. O preto do Recôncavo, cuja altivez e ousadia caminham com ele desde menino, empinou o nariz, arregalou os olhos e respondeu: “Quem tem que ser humilde é o governador, eu sou um artista”.

Surpreso com a resposta, o governador o mirou firmemente e disse: “Então você serve, essa é a minha intuição, quero despachar com você assim que for possível. Vamos reformar o palácio do escravocrata Cerqueira Lima e todo o acervo”. 

A partir daquele dia os dois passaram a jantar juntos todos os domingos para discutirem o andamento das obras. E o museu, que ele dirigiu até 1983, continua na Vitória esperando que outro corajoso cidadão peite os gestores públicos para não deixá-lo desmoronar.  Emanoel Araújo em 2016, na última exposição em Salvador (Foto: Arquivo CORREIO) Foi essa personalidade forte e um talento extraordinário que levaram o santoamarense a enfrentar as dificuldades e o preconceito e construir uma carreira brilhante. Primeiro como artista de múltiplas linguagens, depois como gestor público e cultural. 

Ao longo dos seus 80 anos - que completa neste domingo (15) - o caçula da prole de 11 filhos de Guilhermina e do ourives Vital Araújo, que queria que o filho o sucedesse no ofício, conquistou sucesso, respeito, admiração, prêmios, amigos e desafetos. 

Foi objeto de teses acadêmicas, professor de uma universidade americana, editor de vários livros de arte, curador de diversas mostras e realizou quase duas centenas de exposições de suas obras – entre individuais e coletivas – no Brasil e no exterior.

Mas um dos seus maiores feitos foi elevar a arte negra produzida no Brasil, esquecida nos porões, promovendo um importante diálogo entre a produção afro-brasileira com a de outras partes do mundo, e abrindo as portas de importantes espaços para artistas negros das mais diversas linguagens.  

No Museu Afro-Brasil, em São Paulo, concebido e dirigido por ele, onde responde também pela curadoria, abriu espaço para artistas negros do Brasil e do exterior, dedicando a alguns, como o conterrâneo Mestre Didi, galerias exclusivas e permanentes para suas obras."Emanoel Araújo, um dos meus mais queridos colegas de ginásio,  é uma das figuras mais importantes da minha formação pessoal. Da convivência no ginásio, em Santo Amaro ateliê na Ladeira de Santa Tereza, em Salvador, depois a casa do Desterro, também na Bahia, e finalmente, em São Paulo, onde ele, tendo levado o prestígio que suas gravuras e esculturas lhe propiciaram, deu vida à Pinacoteca e, mais tarde, criou o Museu Afro Brasil. Ali, não faz muito tempo, Emanoel me acompanhou na visita a uma exposição apaixonante. Emanoel agora faz 80 anos! Isto significa muito para Santo Amaro, para a cultura brasileira, para a formação negra do Brasil, para o Brasil como um todo”.  Caetano Veloso - cantor e compositor  Emanoel Araújo com Caetano Veloso e Heitor Reis em sua casa em São Paulo (Foto: Acervo Pessoal) O museu reúne cerca de sete mil peças. Destas, mais de duas mil foram doadas por Emanuel Araújo, em regime de comodato. Além dessas, que ele não sabe o destino que dará após o fim do contrato, possui outras mais de 200 obras em coleção particular, conservada no casarão em que vive, no bairro do Bexiga, no centro da capital paulista.  

Foi exatamente na maior cidade da América Latina também que dirigiu, durante oito anos, a Pinacoteca do Estado de São Paulo, devolvendo o espaço aos paulistanos, totalmente reformado, ampliado e sem as grades que o afastava do público. Quando foi anunciado como diretor do espaço, a sociedade paulistana não gostou. “As pessoas diziam: ‘como um negro, e ainda baiano! E eu dizia: Não só negro, mas homossexual também”, conta.

As críticas, garante, não o abateram. Mais adiante, na reinauguração do espaço, ele devolveu os insultos com uma super exposição do francês Auguste Rodin – Rodin Esculturas e Rodin Fotografias – que teve a sua curadoria e foi visitada por quase 200 mil pessoas. Os paulistanos se renderam ao seu talento. A ponto de lhe darem o título de Cidadão Paulistano.

Apesar da nova naturalidade, não rejeitou a original. Segue dividido entre o amor e ódio que tem pelo estado natal. “Acho que todo baiano tem essa relação de amor e ódio pela Bahia. Descobri cedo que, para ter êxito, tinha que sair de lá. Foi o que fiz”. “Emanoel Araújo é um patrimônio da cultura brasileira, um grande artista,  e um dos maiores diretores de museus da nossa história. “Um orgulho para todos nós baianos e para todos nós brasileiros”.Heitor Reis - Ex-diretor do MAM-BA e sócio criador do fundo de investimentos em arte BGA  Com o ex-governador paulista José Serra de quem foi secretário por 100 dias (Foto: Divulgação) Considerado um gênio por artistas, críticos de arte e historiadores, não passa incólume nem quando dá um dos seus já conhecidos pitis. Um deles, com o então governador de São Paulo, José Serra, virou um clássico da política paulista. Convidado por Serra para assumir a pasta da cultura, devolveu ao chefe ao completar 100 dias de gestão. No seu melhor estilo, Emanoel Araújo encaminhou a carta de demissão com o seguinte texto: “Deixo a secretaria porque o senhor não tomou conhecimento desses cem penosos dias de administração em que, graças a poucos e abnegados servidores, conseguimos realizar muitos projetos e ações, inclusive o catálogo Brasileiro, Brasileiros, no qual encontra-se inserido um texto seu e a cujo lançamento, ontem, o senhor não compareceu, como programado".

À época, questionado pela imprensa sobre a saída intempestiva do secretário, Serra respondeu: “Emanoel é explosivo e vulcânico, mas é um patrimônio cultural, deveria ser tombado”. Os dois seguem amigos até hoje. E as histórias deste baiano elegante e corajoso não devem parar por aí. Aos 80 anos, diz que aposentadoria, nem pensar. Sorte a nossa!  

A seguir, confira a entrevista exclusiva concedida ao CORREIO, de forma virtual: Emanuel chega aos 80 cheio de vitalidade (Foto:Andrea Fiamenghi/Especial para o CORREIO) O senhor completa amanhã 80 anos. Como é a sua relação com a idade? 

Muito antes dos 80 comecei a me assustar com a idade, com a velhice, agora que cheguei a eles, já não penso, e estou em paz comigo, apesar dos  percalços naturais da existência, como quedas  de vez em quando. Mas estou  muito bem,  trabalho todos os dias no museu e no meu atelier.           

Como o senhor resumiria, em uma frase, a sua trajetória?

Uma trajetória e, na realidade, uma grande caminhada, necessita de tempo, de paciência, de disciplina, de ética e de amor ao trabalho, seja ele qual for. Pensa em aposentadoria? 

Não, nunca! Agora mesmo comecei uma suite de pinturas sobre um papel de 1,6 m  x 1 m  que trouxe da Europa e que está quase pronto. É um álbum de colagens serigrafadas e com poetas negros dos séculos XIX ao XXI. Estou executando novas esculturas em madeira onde as formas levantadas dialogam com espaços vasados  e linhas que aparecem entremeadas a esses volumes.

Além de artista gigante, o senhor é considerado um grande realizador. A vida tem sido generosa com o senhor?

Olhando a estante da biblioteca fico mesmo impressionado com os muitos volumes das minhas curadorias, das muitas exposições, minhas e dos museus que dirigi, na Bahia, São Paulo, Curitiba, Recife e Fortaleza e concluo que a vida foi mais do que generosa comigo. E devo contar ainda as minhas grandes obras: a Pinacoteca de São Paulo e o Museu Afro Brasil, no Pavilhão Padre  Manoel da Nobrega,  de 12 mil m², criado por  Oscar Niemayer, no Parque do Ibirapuera, com mais de sete mil obras   dedicadas a arte, a história e a memória dos  luso-afro-descendentes.

Negro, nordestino e homossexual nos anos 1940/1950. Isso dificultou a sua ascensão profissional?

Baiano de Santo Amaro da Purificação, terra de Teodoro Sampaio e Manoel Quirino, dois extraordinários negros da história do Brasil, muito cedo eu intui que teria isso tudo como dificuldades, mas elas não me fizeram mal.

Como lidou com o preconceito e se fez aceito?

Só com trabalho e fiel as minhas convicções. Nada mais.

O senhor brigou com prefeitos, governadores, ministros etc. Essa fama de briguento é uma defesa?

Se não for assim não se faz nada. 

O senhor viveu algumas longas relações afetivas, mas já revelou que é difícil morar junto, conviver. Continua pensando assim ou mudou de ideia e está vivendo um novo amor?  

Eu hoje, mais nunca, sou um lobo solitário. As minhas relações foram duradoras por minha grande preguiça, por estar com o foco nas minhas  aspirações, na minha carreira de artista e gestor. Meus novos amores são meus dois pets. 

O senhor já declarou que é contra casamento (formal) entre pessoas do mesmo sexo, adoção etc. Ainda pensa assim?

Há muito mudei de opinião, hoje sou completamente a favor e  respeitoso com todas as conquistas das minorias e da humanidade. Gostaria de ver ainda um país livre de racismo e do chamado preconceito estrutural. 

Para quem deixará seu acervo, seu patrimônio, quando partir? Tenho uma grande família de sangue e das pessoas que me ajudaram nessa longa jornada. Ainda não sei o que farei, nem mesmo com as 2 mil obras em comodato com o Museu Afro Brasil.

O Museu Afrobrasileiro (Muncab), no Centro Histórico, está até hoje inacabado. O senhor desistiu de brigar por aquele espaço? Entrei nesse projeto por causa do ministro Francisco Welffort (ministro da cultura do governo Fernando Henrique Cardoso) que me pediu para eu escolher um espaço para o MINC construir o Museu Afro Brasileiro, na Bahia. Foi assim que escolhi o antigo edifício do Tesouro do Estado, em detrimento dos que queriam a Casa das Sete Mortes. Mas depois de muita luta, deixei de bater em ponta de faca. Emanoel Araújo e seus dois pets Tim e Joca: novos amores (Foto: Andrea Fiamenghi/Especial para o CORREIO) Sua relação com os gestores paulistas sempre foi mais fácil do que com os baianos? Com os baianos nunca houve tentativa nenhuma 

O senhor sempre transitou bem por vários partidos. Como enxerga a política atual? Um desastre, um absurdo como nunca houve no Brasil. Pense em todas as áreas da politica brasileira! É inacreditável como chegamos a esse despreparo em todos os seguimentos da vida publica!

O senhor sempre declarou ter uma relação de amor e ódio com a Bahia. Como está esse relacionamento hoje?

Todos os baianos têm, de certa forma, amor e ódio pela Bahia, talvez pela pequenez de muitos baianos. Na Bahia, para ir em frente tem que sair fora. Veja quantos bons artistas que se tornaram regionais, apesar do grande talento e da obra construída, por não terem incentivo público, poucos recursos oferecidos  pelas instituições. A grande exceção foi Antônio Carlos Magalhães. Veja a situação dos museus da Bahia, o lamentável desprezo em que eles se encontram. Quem luta por eles? 

Como está o projeto do Instituto Emanoel Araújo em Santo Amaro da Purificação?

Esse era um projeto da minha querida amiga Maria Mutti. Eu nunca acreditei que pudesse ter força para lutar contra a pobreza e o despreparo   da cidade.  Veja o precioso Museu do Convento dos Humildes, por anos fechado; veja a estética que aconteceu com as fachadas das casas; e com as grades contra a violência  que estão hoje em voga em todas as cidades  baianas e brasileiras! Por fim, ela aceitou o meu conselho: desista. E ela desistiu. 

Recentemente, o Museu Afro Brasil teve parte de seu orçamento reduzido, o que causou prejuízos às atividades do espaço. Como estão as coisas hoje?  Estamos nos adequando aos cortes do Governo do Estado de R$ 1,4 milhão, diante da pandemia da Covid 19. Mas estamos vivos, apesar  da incompreensão de alguns setores. 

Quais os planos para o futuro? 

Seguir sempre em frente, apesar das pedras do caminho e o tempo que me resta. Afinal estamos no Brasil!

Em 2017, o senhor foi acusado de assédio sexual e moral por ex-funcionários do museu que dirige. Qual o desfecho dessa história? 

Eu ganhei de todos na Justiça pelas acusações descabidas. Infelizmente  há sempre aqueles que não entendem  o real valor das coisas.

Qual seria seu melhor presente amanhã? 

Estar vivo, lúcido, com trabalho, e sempre irreverente. Afinal, a vida é para ser vivida. Emanoel Araújo em seu ateliê em Salvador em 1964 (Foto: Reprodução de José Cavalcanti) DEPOIMENTOS“A minha mãe, Tomie Ohtake, artista como Emanoel Araujo, era muito amiga e adorava o multiartista, dirigente cultural e ativista. Todo ano, no dia 15 de novembro, ela se lembrava de telefonar ao queridíssimo baiano para dar as boas vindas a um novo ano de vida e, seis dias depois era ela que fazia anos, vinte e sete a mais do que ele. Se viva, esse ano ela faria uma festa! Em 2007, resolvi eu organizar uma grande exposição do agora meu querido amigo Emanoel Araújo, compreendendo esculturas, gravuras e artes gráficas (cartazes e livros), e uma publicação com todas as obras expostas, e texto do curador, o crítico Agnaldo Farias, como eu, admirador dele. Este ano é de festa, pois 80 anos é uma bela idade até para Emanoel que mantém a mesma cara, o mesmo porte e a mesma capacidade criadora desde que chegou a São Paulo”. Ricardo Ohtake – criador e presidente do Instituto Tomie Ohtake“Emanoel Araújo é uma inspiração para jovens, artistas e curadores. Suas obras têm uma linguagem transacional e atemporal. Emanoel é dono de uma estética apuradíssima e sempre se empenhou em difundir a arte afro-brasileira no país. Muito orgulho desse baiano, cidadão paulistano. Que celebremos a vida dessa figura tão importante para a cultura brasileira”.  Andréa Fiamenghi – fotógrafa e amiga do artista que, generosamente, fez as imagens exclusivas para esta matéria “Emanoel, Emanoel Araújo! Palavras são poucas para dizer o quanto admiro e amo esse personagem e seu Museu Afro Brasil”. Maureen Bisilliat – fotógrafa inglesa radicada no Brasil 

“Emanoel Araújo tem uma importância enorme. Lutou, venceu, e o seu legado para as artes visuais e para a nossa sociedade é de um tamanho inigualável. É o amigo do qual mais me orgulho. Ninguém jamais fará o que ele faz. Preste atenção nesta biografia”Justino Marinho – artista plástico, crítico de arte e amigo pessoal