Enquanto o caos segue em frente, com toda calma do mundo

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  • Kátia Borges

Publicado em 16 de fevereiro de 2019 às 10:51

- Atualizado há um ano

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A casa nunca estará suficientemente arrumada. Por mais que se espane o pó do jogo de xícaras, as gavetas hão de conter sempre algum vestígio desorganizado, o desalinho dos talheres denunciando o embaralho entre os variados tamanhos de colheres. E mesmo o faqueiro de herança, que parece ter vindo de outras vidas, encerrará para sempre a ausência de um item em sua caixa de madeira. 

Porque todas as coisas contém em si o acidente de perdê-las, como no poema de Bishop, restamos incompletos e na mais absoluta ignorância entre os signos que nos conectam uns aos outros. Nossos asteroides percorrem distâncias impossíveis, como se da poesia nascesse tudo que aprendemos sobre os astros. O universo nunca estará suficientemente organizado de modo a que possamos compreendê-lo.

Para nosso espanto, Deus não parece muito preocupado. A perfeição das coisas, de tudo aquilo que foi feito, contém em si um desmazelo premeditado. Sem o olhar de quem observa, tudo que se movimenta de modo incessante entra imediatamente em estado de repouso. A natureza odeia o que tem pressa – daí o fato de vermos estrelas de bilhões de anos. Em estado de espera também as palavras descansam dos discursos. Dentro do caos,  os discursos organizam o contato humano possível, como nas gavetas se alinham irregulares as facas e os garfos. Para que algo seja descrito como perfeito, há sempre de haver ali algum erro, alguma perda. Só é verdadeiramente vivo aquilo que não se completa, a linha descontínua, o encontro adiado, os doze minutos que faltavam até a chegada em segurança ao heliporto.

Tudo se estende, tecido tênue em frágeis vigas. O que parece sólido, apenas parece, perece, resiste por milagre. Por breves segundos ou bilhões de anos, o que desaparece projeta-se no tempo, movimenta-se no espaço, traço indelével entre passado e futuro. Pura magia que recusamos pela lógica. Como os peixes cegos que se guiam por antenas nos recantos mais profundos do Oceano ou as montanhas que se erguem no solo da Lua, formando vales no satélite.

As coisas nunca estarão em ordem, a contento da Ineludível. Quando a Indesejada das gentes chega, como na Consoada de Bandeira, campo lavrado, mesa posta, casa limpa pouco significam. Dura ou coroável, esta inesperada visita esgueira-se entre os móveis, desvia-se dos móbiles, e deixa que tudo siga exatamente como estava antes, ad aeternum organizando-se em perfeita paz e incompletude.