Ensaio sobre a nossa Cegueira 

Linha Fina Lorem ipsum dolor sit amet consectetur adipisicing elit. Dolorum ipsa voluptatum enim voluptatem dignissimos.

  • D
  • Da Redação

Publicado em 19 de março de 2020 às 17:10

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

De repente o caos se instala. A nossa incapacidade de resolver grandes problemas se aflora e com ela surge nosso egoísmo, nossa constante ação destrutiva com o meio ambiente e com nós mesmos, nossa incapacidade de empatia quando o bem comum já não existe mais.

Não estou me referindo ao ano de 2020, mas ao cenário descrito por José Saramago em seu Ensaio sobre Cegueira (1995). Li esta obra aos 15 anos. A narrativa instigante do autor português não era capaz de me fazer refletir sobre sua obra e a ação antrópica, tal qual me arrisco atualmente, quase vinte anos depois. 

Na escassez prevalece, muitas vezes, o egoísmo quando a solidariedade poderia reinar. No caos, não conseguimos ouvir nossos líderes porque a incapacidade de governar prevalece. Na guerra, já não é mais possível falar na preservação dos mais frágeis porque todos nós o somos. 

A magnifica obra de Saramago parece se tornar real daqui a alguns dias, tomara que suas lições não saiam do mundo ficcional. A literatura tem justamente esta finalidade, não apenas para prever o futuro, mas para nos possibilitar refletir sobre nosso papel enquanto ser humano no tempo presente.  É como se fosse um retrovisor literário que nos direciona na estrada correta do mundo real.  

Nesta crise de pandemia do coronavírus, como estamos lidando com o consumo de bens escassos? Quanto de preocupação temos destinados aos pequenos produtores? Que sentimento temos para com aqueles que sequer têm moradia e água tratada para lavar suas mãos e até mesmo para matar sua sede? Com quem estão os filhos das empregadas domésticas que continuam trabalhando e outrora eram encaminhados às creches? 

Neste cenário, “quarentena não é férias”, mas parece ser um privilégio mais do que umas simples férias nos dias de normalidade.    Ora, enquanto respiramos, podemos ter esperança. Sim, podemos acreditar na ciência. A literatura nos possibilita visitar enredos que a mente e o corpo humano sequer experimentaram, mas a ciência, por outro lado, sabendo dessa visitação real procura meios de tornar nossas vidas mais possíveis. De fato, devemos acreditar que o caos leva à ordem. Daí o sentido de se apoiar a pesquisa e o ensino em uma sociedade cada vez mais desigual que depende de avanços sociais para garantir a sobrevivência, também, dos miseráveis. 

João Cabral de Melo Neto acerta ao dizer que um galo sozinho não tece uma manhã, que precisamos de tantos outros galos para construir o futuro. Precisamos uns dos outros como família, amigos, pacientes, consumidores, eleitores, alunos, professores, empregados, empregadores, cidadãos. Do contrário, a acuidade trazida por Saramago se apresentará como óculos aos nossos cegos olhos. 

Diego Pereira é doutorando em Direito Constitucional pela UnB e mestre em Direitos Humanos e Cidadania pela UnB. Procurador Federal (AGU). É professor de Direito e autor do livro Vidas interrompidas pelo mar de lama (Lumen Júris 2018)

Opiniões e conceitos expressos nos artigos são de reponsabilidade dos autores