‘Escrevo para dialogar com os meus espantos’

Monge beneditino, o poeta cearense Tito Leite apresenta seu primeiro romance, Dilúvio das Almas, que sai pela editora Todavia

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  • Kátia Borges

Publicado em 3 de abril de 2022 às 16:00

. Crédito: divulgação

A qualidade da poesia de Tito Leite já não é novidade, sua estreia como ficcionista sim. No último mês, os leitores se surpreenderam positivamente com a chegada ao mercado de Dilúvio das Almas, publicado pela editora Todavia. Monge beneditino, 42 anos, nascido na cidade de Aurora (CE), Tito é autor dos livros Digitais do Caos (Selo Edith, 2016) e Aurora de Cedro (Editora 7Letras, 2019), ambos de poemas.

Mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, esteve por breve período na Bahia, como hóspede e estudante no Mosteiro de São Bento de Salvador. Além do amadurecimento na vida monástica, conduzido por Dom Manuel Abade, conviveu com escritores locais, integrando-se aos festivos almoços realizados na Ceasinha do Rio Vermelho.

Hoje, vive em Pernambuco, no Mosteiro de São Bento de Olinda, ao qual é oficialmente ligado. Nesta entrevista, exclusiva para o CORREIO, conversamos sobre a temporada baiana, a vocação religiosa, a vaidade do meio literário e, claro, sobre o processo de construção do primeiro romance, ambientado no semiárido e que gira em torno de questões atuais, como a violência e o retrocesso moral da sociedade.

Tito, você passou uma temporada em Salvador, na Bahia, no Mosteiro de São Bento. Como esse período marcou a sua vida, tanto como monge beneditino quanto como escritor? Foi um período de maturação para minha vida monástica e de escritor. No Mosteiro São Bento em Salvador, a convivência com Dom Abade Emanuel D’áble do Amaral, ajudou-me bastante a ser um monge melhor, ensinando a importância do equilíbrio, na espiritualidade beneditina. Além disso, o Dom Abade sempre me incentivou a escrever e apresentou-me alguns escritores, por exemplo, o poeta Fernando da Rocha Peres. Guardo com muito carinho os encontros com alguns poetas na Ceasinha do Rio Vermelho. Conversando com os escritores, Florisvaldo Mattos, Ruy Espinheira e Carlos Barbosa, aprendi muito. E, também, tive a alegria de conhecer pessoalmente o Itamar Vieira e Lima Trindade. O convívio com os monges de Salvador e os escritores baianos possibilitou uma nova reflexão sobre minha consagração monacal e o fazer poético.

Em Olinda (PE), onde vive atualmente, pretende permanecer ou está apenas de passagem? Como a experiência da viagem se configura em sua vida? Sou monge beneditino e temos o voto de estabilidade, não podemos mudar para outro Mosteiro. Na minha estada em Salvador, passei como um hóspede, estava tendo aulas na (Universidade) Católica, mas estando ligado ao Mosteiro São Bento de Olinda. A viagem para mim se configura numa experiência de encontros que buscam boas marcas, tanto no espiritual como no literário. É até curioso que sempre digo que minha escrita é produto dos meus encontros literários.

A vocação literária antecede a vocação religiosa? Em que ponto o monge beneditino se tornou um escritor? Desde criança gostava do universo da leitura e tentava escrever meus primeiros textos. A vontade de ser um religioso sempre foi algo forte na minha vida, talvez, em parte, influenciada pela religiosidade do meu sertão, marcada pelas romarias. Comecei a escrever poemas como uma forma de dialogar com o mundo e com os meus espantos. Nunca fui de aceitar verdades dadas sem antes questionar. A minha vida como a de todos os escritores carrega algo de pungente. Nesse sentido, a escrita é o espaço no qual trabalho com o que há de dilacerado e de enfermo. Penso que o autor surgiu a partir dessa necessidade de diálogo. Capa do primeiro livro de fição de Tito Leite (divulgação) Sente-se à vontade na conciliação dessas duas vocações, em que pontos elas se aproximam e se distanciam? Eu não vejo contradição entre o monge e o escritor. Acho lindo quando Heidegger diz que o poeta é uma ponte entre os homens e os deuses, sendo a linguagem a morada do Ser. A própria bíblia é repleta de metáforas, parábolas e recursos poéticos. Às vezes, elas se distanciam quando mergulho num projeto e me deixo consumir totalmente pelo seu processo de escrita. Na verdade, o choque acontece quando tenho que tomar cuidado com certos temas, ou não dizer verdades que incomodam. Mas não atrapalha no meu processo de escrita. Isso porque, quando escrevo, não penso no que meu pai, minha mãe ou algum religioso vai pensar. Eu escrevo e pronto. Sou leitor de Baudelaire, busco o dissonante. Mas veja bem, a verdadeira vocação cristã, além de batismal, é profética. Portanto, cabe ao escritor e ao religioso denunciar toda forma de obscurantismo. Sendo assim, o meu único compromisso é não escrever algo que corrobore esses movimentos reacionários e genocidas.

A suavidade marca seu trabalho literário, seja em Digitais do Caos (2016), seu livro de estreia na poesia, quanto em Aurora de Cedro (2019), também de poemas, mas em Dilúvio das Almas (2022), sentimos uma narrativa mais densa, centrada num personagem, embora culto, controverso. Como se organizou a narrativa do seu primeiro romance? Escrever um livro compacto com uma prosa enxuta foi a primeira coisa que planejei. Para mim, o processo de construção do personagem é muito importante, e, para desenvolvê-lo, refleti bastante sobre as suas contradições. Lembrando que, quanto mais complexo um personagem, mais interessante ele pode ficar. Já no foco narrativo, levei em consideração a personalidade forte de Leonardo e por isso escolhi um personagem narrador a um narrador onisciente. Na fluidez do texto, pensei em frases curtas para ganhar velocidade.

Uma das características mais marcantes de Leonardo é o de ser um viajante assumido como tal, que considera paisagens e pessoas como passageiros em sua vida. O que o levou a essa escolha? Leonardo é complexo, não é um homem fácil de adivinhar. Acredito que tal escolha esteja relacionada a sua busca pela liberdade, uma experiência de vida sem passar pelo gabinete de um burocrata ou de uma vida cheia de regras. Ele não busca nenhuma forma de estabilidade, mas uma vida rica em significados. E suas viagens são interessantes, até porque o personagem já não acredita na sociedade. Acho que a epígrafe do livro fala muito sobre ele, “Agora sou maldito, tenho horror à pátria. / O melhor é um sono bêbado, na praia”.

O semiárido é o cenário central da trama, em Dilúvio das Almas. Em sua opinião, o momento que vivemos favorece o surgimento, e o acolhimento, de novas visões do Nordeste na literatura brasileira? Acredito que sim. Muitos editores e pesquisadores buscam compreender uma literatura produzida fora das metrópoles e grandes centros. O Torto Arado, de Itamar Vieira, abriu muito esse espaço. Claro que já existia um interesse pelo Brasil Profundo, como podemos observar nos escritos de Raimundo Carrero, Socorro Acioli, Micheliny Verunschk e outros. Mas o fato é que Torto Arado foi o grande acontecimento. Até porque, no que diz respeito ao mercado editorial sobre as narrativas ambientadas no Nordeste, existe um antes e um depois do Itamar.

A questão da violência também é marcante em Dilúvio das Almas, como se esta fosse o destino inexorável da humanidade. De que modo a realidade de nosso país e daquela região o afeta? A violência de Dilúvio das Almas é a mesma que acontece nos nossos dias. É até curioso o fato de que o romance se passa na década de noventa, mas é bastante atual. Todo o retrocesso e patriarcalismo de uma sociedade obsoleta voltou. Estamos num país que tem como projeto a dizimação das minorias, e de forma cínica fala de costumes e família. A única coisa que posso sentir é indignação e vontade de militar contra essa realidade obsoleta.

Sendo um monge em um meio marcado pela vaidade, como percebe as próprias controvérsias do mercado literário em nosso país? Eu percebo muita vaidade e falta de união, escritores fazendo linchamento virtual de outros escritores. É muito triste isso tudo, a poesia, como lembra Roberto Piva, é sempre um fenômeno minoritário, e mesmo assim, temos escritores jogando na fogueira da maldade outros escritores. Uma coisa que me chama bastante atenção é quando sai a lista de finalistas de prêmios literários, vejo muitos escritores reclamando que seus nomes não estão na lista, mas nunca vi ninguém reclamando porque o seu livro não ganha os olhos dos leitores.

Qual seria a função da literatura, da prosa e da poesia, a seu ver, em tempos tão conturbados e sombrios? A mesma função da filosofia, que a literatura sempre exerceu, a de colocar o mundo em questão. Acredito no poder subversivo das narrativas, em sua capacidade de transfigurar a realidade. Como sabemos, estamos em tempos de indigência, com um obscurantismo que anda de mãos dadas com um fascismo crescente, cabe aos escritores se posicionar contra tudo o que oprime e diminui a vida.