'Estado deve ser neutro em matéria religiosa', diz historiador José Pedro Paiva

Pesquisador português, referência em estudos sobre religião, esteve em Salvador para participar de conferência na Universidade Federal da Bahia (Ufba)

Publicado em 9 de novembro de 2019 às 12:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Acervo Pessoal

Na missa que encerrou o Sínodo da Amazônia, no final de outubro, em Roma, o Papa Francisco foi incisivo: criticou a opressão a exploração de pessoas, afirmou que o “saque” vem desfigurando a Amazônia e divulgou, num documento de 33 páginas, propostas como a ordenação de homens casados para atuar na Amazônia, o respeito à religiosidade não cristã dos indígenas e ainda criou a ideia do ‘pecado ecológico’ – definido com o ato ou hábito de destruição da harmonia do meio ambiente.

Não é a primeira vez que a autoridade máxima da Igreja Católica se manifesta sobre assuntos da ordem política do mundo. O próprio Papa Francisco já deu outras declarações sobre o aborto, a homossexualidade, as mulheres e até a economia mundial. Na verdade, a relação entre Igreja e Estado é antiga e quem fala sobre isso com o CORREIO é o historiador português José Pedro Paiva. Ele esteve em Salvador nos dias 24 e 25 de outubro para uma conferência internacional sobre a atuação dos bispos no Império Português, na Universidade Federal da Bahia (Ufba).

Durante sua passagem por Salvador, o historiador, que coordena o projeto ReligionAJE, sediado na Universidade de Coimbra, em Portugal, com participação de pesquisadores do Brasil, de Cabo Verde e da Itália a fim de investigar a atuação de bispos em assuntos relacionados à Igreja, mas também à administração e à justiça, conversou com o CORREIO. E ele foi claro ao falar sobre as relações entre a Igreja e o Estado: “Império e Fé andaram entrelaçados”. Não seria estranho que assuntos que dizem respeito à religião tivessem tanta influência no mundo contemporâneo.

Para o senhor, qual o peso das questões religiosas no mundo atual? Por que isso acontece? O que a história pode ensinar? Basta estar atento ao noticiário mundial - quando o conseguimos encontrar, pois, infelizmente, nos tempos que correm somos bombardeados com informações irrelevantes para o conhecimento do mundo. Mas basta estar atento para perceber como a atualidade é muito marcada pelas questões religiosas.A religião já não tem a capacidade de mobilização totalizante da vida das sociedades, pelo menos como tal se manifestou, por exemplo, na Europa Medieval e Moderna. Mas ela ainda é incontornável na vida espiritual de milhões de seres humanos, ainda é força de vida para tantos outros, e também ainda é capaz de desencadear ódios e violentos conflitos.Não sei explicar, enquanto historiador, por que motivo as religiões têm tamanha força. Provavelmente porque os humanos são seres espirituais, que tendem a viver gregariamente e a produzir sistemas de crenças, as quais lhes consentem perceber-se a si mesmos e a dar inteligibilidade ao mundo em que vivem, mas isto, obviamente, não é uma leitura histórica da questão. A História pode fornecer capacidade para compreender a complexidade destes processos e como as religiões também se foram transformando e com elas a humanidade e vice-versa, pois as religiões também são o resultado dos homens do seu tempo.

O que a sociedade contemporânea pode aprender com pesquisas históricas como estas propostas pelo projeto ReligionAJE? Na atualidade vigoram concepções muito pragmáticas e instrumentais do papel das ciências e das instituições de investigação. Foi-se dissipando nas últimas duas ou três décadas a noção de que o conhecimento tem um valor imanente, intrínseco e que pode não ter aplicabilidade imediata. Mesmo disciplinas como a matemática e a física têm padecido devido a esta doutrina que hoje é dominante. Eu diria que este projeto permitirá resgatar ao passado memórias que estão esquecidas e que podem ajudar a entender melhor o presente e a identidade de diversos lugares no mundo. Tenha-se em mente que presente é cada vez mais global, e que assim é também por causa destas dinâmicas religiosas que estiveram associadas a disseminação pelo mundo dos impérios europeus, sobretudo os ibéricos, entre os séculos XV e XVIII.Se queremos entender a complexidade do mundo contemporâneo e a sua - apesar de tudo - diversidade, necessitamos, necessitaremos sempre saber como chegamos até aqui. Para o senhor, que efeitos a proximidade entre Igreja e Estado trouxe para a nossa sociedade? Essa aproximação, inclusive com a participação da Igreja em questões político-administrativas e até com viés jurídico, foi saudável? Os historiadores não devem assumir o papel de juízes do passado. Devem sobretudo procurar reconstitui-lo utilizando metodologias apropriadas, percebê-lo e explicá-lo, isto é, devem ser capazes de fornecer quadros lógicos e coerentes para o modo como o tempo sempre transforma a vida dos homens em sociedade.Eu, habitante do planeta terra no século XXI, não tenho qualquer dúvida em considerar que os meus antepassados humanos foram capazes de alcançar as façanhas aos meus olhos mais notáveis. Mas também foram responsáveis por indizíveis atrocidades, brutalidade, desumanidade e estupidez para os meus padrões de entendimento. Não creio que os homens individualmente considerados e as sociedades possam suportar as dores de todas as barbaridades que os nossos antepassados possam ter cometido. Se tivéssemos que pagar por isso ficaríamos eternamente deprimidos.Todavia, em todos os presentes há a tendência para se considerar que se atingiu um estado de evolução que é superior às épocas precedentes. Mas não devemos esquecer que o mundo está em perpétuo movimento, assumindo novas feições. Nunca chegaremos ao fim da História, apesar de alguns a terem já precipitadamente anunciado. Não tenho, por isso, a menor dúvida de que os vindouros hão de olhar para a sociedade em que hoje vivemos e considerar bárbaras e inaceitáveis dimensões da vida e do pensamento que hoje julgamos inatacáveis. Sempre assim foi e sempre assim será. Porque há História. Para me reportar apenas aos casos do Brasil e de Portugal, foi preciso esperar pelos finais do século XIX e pelo início do século XX para se terem instituído nestes territórios leis que inequivocamente separam a esfera de intervenção do Estado da(s) Igreja(s). O passado foi o que foi. Tendo sido assim, contribui para que a vida dos homens e das sociedades tivesse seguido determinados rumos. Eu, com franqueza, entendo que o Estado deve ser neutro em matéria religiosa e que o poder político e o poder religioso (mais ou menos organizado) não se devem imiscuir um no outro, seja através dos agentes que os representam, seja pelas dinâmicas de atuação que assumem. Mas não estou seguro de que hoje eu pudesse ter esta concepção se, no passado, Estado e Igreja não tivessem coexistido irmanados.

Essa onda de conservadorismo pelo mundo e que vem sendo muito sentida no Brasil tem pautado discussões que são marcadas por posições intolerantes que encontram apoio em alguns grupos religiosos, como a condenação ao aborto e concepções de família que se baseiam num modelo exclusivamente heterossexual. O que o senhor pensa sobre esse cenário atual? De fato, no mundo contemporâneo assistimos a fenômenos muito preocupantes. Tanto os ligados ao governo político em diversos pontos do globo, como a questões comportamentais, a proliferação de formas iníquas de desigualdade e segregação, uma tecnologia poderosíssima que se intromete e virtualiza as relações humanas, modelos de vida que ameaçam a sustentabilidade do planeta tal qual hoje a conhecemos. Tudo isso é tremendamente preocupante. Mas, quando olho para o passado, e falo do meu lugar de historiador, não estou nada certo de que, salvo as questões ambientais, estejamos hoje pior do que os nossos antepassados, apesar de, porque temos mais informação e em tempo real de todos os lugares do mundo, por vezes termos a percepção de que vivemos à beira de um abismo. Mas não duvido de que hoje persiste um inquietante e desgostante clima de desconfiança face ao outro, ao diferente (na cor da pele, nas crenças, no estilo de vida, etc).Hoje como ontem, a raiz desta desconfiança é a ignorância, o desconhecimento, a incapacidade de entendermos o que é diferente de nós. Esse é por norma o sistema que gera intolerância, literalmente não aceitar o diferente, e que em alguns momentos foi responsável pela disseminação de comportamentos de elevada violência. A instituição que referiu (Igreja), e que eu tenho estudado, foi, sem dúvida, um dos expoentes deste quadroA História pode ter um papel profilático. Conhecer o passado, quando bem explicado, auxilia a compreender o outro que já fomos e, por esta via, a entendê-lo consentindo o diálogo sem o qual não se podem estabelecer pontes de comunhão. Todo o conhecimento é esperança de um futuro melhor e, nesse quadro, a História é um conhecimento imprescindível.