'Eu não agredi nenhum dos policiais', diz advogada detida por PMs em Salvador; leia relato

Eduarda Mercês Gomes foi detida e agredida por PMs no último domingo em um posto de gasolina na Barra

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  • Amanda Palma

Publicado em 14 de junho de 2017 às 11:07

- Atualizado há um ano

A advogada Eduarda Mercês Gomes ainda sofre com as agressões sofridas durante uma confusão com policiais militares em uma loja de conveniências em um posto de gasolina na Barra, no último domingo (11). Ela fez exames no Instituto Médico Legal Nina Rodrigues (IMLNR) para constatar as agressões e avaliação complementar no Hospital Português. (Foto: Jefté Rodrigues/Correio)Sem conseguir dormir ou comer direito, ela contou a jornalistas no prédio onde trabalha, na região do Iguatemi, como tudo aconteceu. Leia abaixo o depoimento da advogada:

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“Eu estava dentro da loja de conveniência. A dona estava achando ruim a quantidade de pessoas, que não estavam consumindo, usando o banheiro do estabelecimento. Chegou um rapaz que ficou questionando por que ele não poderia usar o banheiro. Eu perguntei a ela: 'Se eu comprar algo no lugar dele, ele poderá usar?'. Ela me disse: 'Pode, pode usar o banheiro'. Fui até o funcionário e disse: 'Dona Rosa disse que ele pode usar o banheiro'. Aí, o funcionário respondeu: 'Agora quem não quer sou eu'. Insisti pra ele que pudesse deixar, e ele disse: 'Por que você está defendendo ele? Você é advogada?'. Eu disse: 'Sou'. Ele disse que não ia deixar e que já tinha chamado a polícia para ele.

A polícia chegou, mostrei que sou advogada. Um dos policiais que lá estava me empurrou. Eu botei o que estava [segurando] na minha mão em cima do balcão, e eles me empurraram novamente. Tentei segurar na mão de um deles pra não cair, aí ele me pegou pelo braço esquerdo, me chutou por trás e me deu uma rasteira.

Eu disse: 'Eu não estou resistindo à prisão, podem me levar' porque eu não sabia o que poderia acontecer. Mas ele veio com joelhadas, machucou minha costela, minha pélvis, minha barriga, meus seios.

Eu não agredi nenhum dos policiais. Eles me empurraram, segurei no braço de um para não cair e um deles puxou meu braço e eu disse: 'Solte meu braço'. Como tinham mesas atrás, me segurei. Foi aí que o policial me deu um chute nas pernas, deu a rasteira e eu caí no chão.

Essa questão do racismo... se houve algum problema com alguma pessoa, eu não sei, eu não posso afirmar, eu estava no caixa pagando. Quando eu cheguei na delegacia algemada, a doutora [delegada] Marley [Reis] pediu para eu que explicasse. Após a explicação, ela pediu que me soltassem imediatamente. O tenente se negou a dar as chaves das algemas, segundo a delegada. Eu não vi isso, mas segundo a delegada, ela teve que lembrar que poderia dar voz de prisão a ele. Foi aí que Roberto Starteri [advogado] chegou e me acompanhou, o pessoal da OAB chegou.

Era visível a forma que eles [PMs] induziram o cara [funcionário da loja de conveniências]. Eles estavam explicando como o cara ia dar as explicações na delegacia. A própria delegada que me atendeu, que já não era doutora Marley, era doutora Isabel, chegou e falou que isso era um absurdo. Todas as pessoas que viram, acharam um absurdo.

Leia mais: vídeo mostra abordagem da PM a advogada detida após confusão na Barra

Saí de lá e fui direto para o IML, eu ouvi várias mídias informando 'ah, ela não deu queixa'. Realmente eu não dei. Eu estou aqui, mas estou com dores, eu não consegui dormir. Eu cheguei eram 4h30 da manhã em casa, depois de ir para o IML. Minha pélvis está machucada. Cheguei e tive que me expor lá, ser constrangida, não só sendo levada algemada dentro do camburão sem necessidade, quando eu dizia: 'Me leve, eu não estou resistindo'. Quando tive que ir para o IML, eu cheguei a tremer. Tomei remédio para taquicardia, mas não adiantou. Eu não consegui dormir, comer.

Eu estou sentindo dores e fui até o Hospital Português, e os médicos que lá me atenderam, acharam aquilo um absurdo. Fiz tomografia de cérebro porque eu bati a cabeça. Meu estômago está todo dolorido. Até respirar dói. Minha pélvis está roxa, cotovelos ralados, meus seios. Os médicos deram o laudo de múltiplos traumatismos, sem lesões agudas.

Eu saí de lá, e hoje cheguei aqui no escritório pra poder respirar. Mas mesmo assim, preocupada, porque eu não sei o que acontece. Por que a polícia agiu assim? Eu não tenho nada contra a PM, é necessária a corporação. Sei que o trabalho não é fácil, mas não admito ser maltratada, ser tratada como lixo, porque nenhum ser humano merece. Não é só porque sou advogada, não é porque sou mulher, mas porque sou ser humano acima de tudo. E eles não me respeitaram, sequer me deram oportunidade de conversar. A dona da delicatessen já sabia que eu era advogada, o funcionário da loja sabia. Ou seja, ainda tem a cara de pau de dizer que foi tudo por causa do racismo. Meu pai é negro, minha família é negra, eu me considero negra.

Eu tive um tumor de câncer de pele no couro cabeludo e tive problemas nos pontos. Na segunda-feira eu suspendi os remédios. Eu não posso nem pentear o cabelo na ferida, quiçá tomar uma queda. Se meus pontos tivessem aberto, o que poderia ter acontecido comigo? Aqui na minha testa tem um calombo, se foi chute, se foi murro, eu não sei, eu só levantei a mão para ver se eles paravam, mas nem assim eles pararam”.

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RepresentaçãoNesta terça, a Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Bahia, (OAB-BA) entrou com uma representação para que seja instaurado um processo disciplinar contra os policiais militares da 11ª Companhia Independente da Polícia Militar (CIPM/Barra), que participaram da ação. No documento, são citados o tenente João Antônio Galvão Costa, e os soldados Edmar Gonçalves Teodízio e Jeandel Marques de Jesus.

Ainda de acordo com a OAB, os depoimentos dos policiais têm contradições na acusação de injúria racial contra a advogada. “O depoimento dos policiais e da testemunha conflitam, uma hora alegando que a advogada o chamou de 'negro safado', depois 'preto safado'”, diz a representação.

Segundo o documento, a advogada ficou cerca de 1h30 dentro da viatura, para que “os hematomas decorrentes das agressões desaparecessem, já que eram superficiais”. Segundo a OAB, todo esse tempo dentro do veículo da polícia “configura crime de tortura”. A Polícia Militar ainda não se posicionou sobre a representação. 

Em nota, a corporação informou que o vídeo mostrando a abordagem foi disponibilizado para avaliação da Corregedoria da PM. "Se houver indícios de alguma agressão por parte dos policiais militares poderá ser instaurado um Inquérito Policial Militar para apurar uma possível agressão sob a luz do Código Penal Militar. Na esfera administrativa também poderá ser instaurado um processo administrativo para avaliar a conduta dos militares sob a luz dos preceitos constantes no Estatuto dos Policiais Militares da Bahia", diz a nota.