Fabrício Boliveira fala sobre Roberval: 'resquícios da escravidão'

Ator baiano tem se destacado com personagem que surge poderoso e rouba a cena na nova fase de Segundo Sol

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  • Laura Fernades

Publicado em 9 de setembro de 2018 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Divulgação
O início da carreira de Boliveira foi marcado pela peça Capitães da Areia, da Cia. Bai- ana de Patifaria, em 2002, quando estudava na Ufba por Foto: Divulgação

Roberval (Fabrício Boliveira) voltou com tudo. Depois de uma temporada na África, o ex-ajudante de pedreiro que tem roubado a cena na novela Segundo Sol chegou empoderado e decidido a esfregar seu sucesso na cara de todos aqueles que o humilharam. Principalmente do poderoso Severo (Odilon Wagner), que sempre tratou o filho como empregado e fez de tudo para negar que é seu pai.

Mas o cenário já está mudando, afinal Roberval comprou a mansão da família Athayde e escolheu ninguém menos que Severo para ser seu motorista. “Parece um pouco a fábula do opressor e do oprimido, né?”, compara o ator baiano Fabrício Boliveira, 36 anos, em entrevista ao CORREIO. “Mas não sei se tem toda essa vingança nessa volta dele”, pondera o artista que tem se destacado cada vez mais na novela que chegou ao capítulo 100 essa semana.

O problema é muito mais complexo do que parece, defende o ator, e vai além do ser vilão ou mocinho, “maniqueísmo que está velho”. “Olham para o vilão esperando só vilania, mas o personagem é muito maior. A sensação é muito mais de um resgate do passado, um trauma mal resolvido que persegue esse cara e ele tem que lidar 20 anos depois. Muito mais que oprimir, está revendo a si mesmo”, reflete.

O retorno triunfal de Roberval causou tanto burburinho que algumas capas de revista chegaram a dizer que a riqueza do personagem foi construída a partir do tráfico de diamantes. “Informação que nem eu tinha”, ri Fabrício, enquanto explica que não é bem por aí. Diante da “fake news dentro da fábula” e sem revelar de onde vem o dinheiro, o ator garante que a única certeza é que seu personagem não enriqueceu dessa forma. Essa não passa de uma tentativa de “rotular alguém, viciado nos seus estereótipos”, critica Fabrício.

Então o ator garante que já, já os telespectadores vão descobrir o que aconteceu com o personagem no período em que esteve fora. Mas enquanto o segredo não é revelado, o público pode acompanhar as reviravoltas das próximas cenas de Segundo Sol. A já anunciada morte de Remy (Vladimir Brichta) é um dos ápices da nova fase e vai acabar aproximando Roberval de Luzia. Depois de temporada na África, Roberval compra mansão da família Athayde e faz todo mundo trabalhar pra ele (Foto: TV Globo/Divulgação) Escravidão Como a arte imita a vida, vale também aproveitar a reviravolta na história de Roberval para levar o assunto para “dentro das casas, para os trabalhos, o barzinho da esquina e o consultório médico”, como sugere Fabrício. Isso porque o mote do filho da empregada revela muito sobre os dias de hoje e provoca diferentes reflexões.

“Roberval trata de assuntos muito enraizados que têm a ver com trabalho servil, com resquícios da escravidão. Interpretar personagens que têm uma força dessa é muito bom”, comemora o ator, enquanto emenda que a questão negra é algo que carrega consigo e que isso serviu de estímulo na hora de interpretar Roberval. Aí a função da arte entrou como cereja do bolo, afinal a partir dela é possível “abrir novos olhares sobre as coisas e criar essa nuvem de pensamento”.“Somos um país muito acostumado com o elevador de serviço, o quarto de empregada... Como lido com os empregados da minha casa? É uma discussão que vai mexer um pouco. Temos que ter clareza nessas informações que a gente está provocando, sabe?”, pondera o ator que acredita que o debate proposto pela novela “é mais para reflexão e transformação da realidade”.Polêmica Nesse ponto é difícil não lembrar da polêmica provocada pela própria novela das nove, que foi questionada pela falta de atores negros no elenco. O assunto foi parar até no jornal britânico The Guardian, que questionou a representatividade negra de Segundo Sol. “Bahia é o estado mais negro do Brasil: mas você não vai perceber isso na nova novela”, diz a matéria. “Tem quase todo o elenco branco, apesar de se passar em um local em que 80% da população é negra ou mista”, completa, citando Salvador.

Questionado sobre o tema, Fabrício não se furta a responder e ainda diz que adoraria participar da audiência pública que vai acontecer quinta-feira, no Rio de Janeiro, com o tema “Inclusão de Negros e Negras no Mercado de Trabalho nas Redes de Televisão”. Apesar de não ter sido convocado para a audiência que será realizada pelo Ministério Público do Trabalho, o ator diz que quer “estar junto pra ouvir e entender” os questionamentos que serão levantados na sessão que vai reunir especialistas, artistas e representantes de movimentos negros. Fabrício fala sobre polêmica da falta de negros no elenco de Segundo Sol (Foto: Raquel Cunha/TV Globo) “O que acho disso tudo é que o negro está em movimento nesse país: movimento intelectual, presencial... Os últimos dez anos de cota, de melhor situação econômica para a antiga classe C, fez com que as pessoas pudessem falar mais. Esse movimento está fortíssimo e vai exigir o lugar de igualdade de direitos e isso em todas as esferas sociais”, comemora Fabrício. “Foi o que aconteceu em Segundo Sol. Acho ótimo começar pela televisão, pela arte”, acrescenta o ator.

O debate, porém, precisa ultrapassar a barreira da telinha e alcançar “os hospitais, as diretorias de universidade, os professores, os advogados...”, defende o ator que tem a reflexão sociopolítica como traço marcante. “É um absurdo a gente ter poucos negros assumindo profissões de decisão, de escolha. Falta bastante. Estão faltando autores negros, diretores negros, está faltando os negros ocuparem outros lugares”, diz em tom de alerta.

Arte política Por isso, sempre pensa muito bem no papel que aceita interpretar, afinal não tem interesse em reproduzir estereótipos. Foi assim quando escolheu viver o bombeiro Marco Antônio, na série Treze Dias Longe do Sol (2017), por exemplo. “Não param de matar jovens negros dentro das comunidades. Se a gente ressaltar que esse homem negro podia estar preparado para salvar vidas, a gente teria com certeza outros retratos de Brasil”, disse ao CORREIO, na época da estreia.

O mesmo aconteceu com outros inúmeros papéis da carreira que começou com a peça Capitães da Areia, em 2002, e passa agora por um momento fértil. No cinema, além dos filmes Tungstênio, de Heitor Dhalia; Miragens, de Eryk Rocha; e Tudo Bom, Tudo Bem, de Willy Biondani; Fabrício acrescenta ao currículo o esperado Simonal, ainda sem data de estreia. No drama de Leonardo Domingues, vive o cantor Wilson Simonal (1938-2000), “nosso primeiro astro popular a ser esmagado pelo racismo”. No cinema, vai interpretar o cantor Wilson Simonal (Foto: Divulgação) “Me sinto lisonjeado com essa história, porque tenho a sensação que Simonal poderia ter sido um tio meu, alguém dos meus antepassados. Até hoje a gente não viu nenhum negro ‘megastar’ na história do país. Puxaram o tapete dele por ter sido único, por chegar onde chegou”, destaca Fabrício. “Carrego comigo, de algum jeito, todas essas histórias negras que foram sufocadas na história”, acrescenta.

Ao provocar as pessoas com sua arte, o ator confessa que fica “com os olhos brilhando”. “É muita gente pensando em coisas que passam pelo meu corpo, minhas ideias”, vibra. No filme Tungstênio, por exemplo, o assunto em questão é a volta da ditadura e Fabrício não hesita:“Pensar na volta da ditadura, hoje, é pensar com ignorância, é não olhar para o passado”. “Por que esses caras continuam nos cargos de poder, de decisão, e a gente pobre, simples, negra não está ocupando esses lugares?”, provoca.  [[galeria]]