Família 88: bastidores mostram ambiente decisivo para título do Bahia

Amizades extracampo, treinos em três turnos e 'bichos' gordos levaram tricolor à sua maior conquista

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 25 de fevereiro de 2019 às 20:40

- Atualizado há um ano

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Mais que um grupo de jogadores, time de 88 tinha fortes laços de amizade (Foto: Reprodução) A competição tinha um nome sugestivo: Copa União. Era a alcunha “fantasia” do Campeonato Brasileiro, criada no ano anterior, em 1987, pelo Clube dos 13. Na temporada seguinte, em 1988, o nome da copa não poderia caber melhor ao clube que a venceu. Passados 30 anos da conquista do título (decidido em 19 de fevereiro de 1989), histórias de bastidores mostram que aquele grupo de jogadores do Bahia tinha uma ligação diferenciada entre eles.    

A família 88 tinha uma forte amizade extracampo, confirmam diversos ex-craques tricolores, funcionários e torcedores ouvidos pelo CORREIO e pelo jornalista e pesquisador Flávio Novaes, que organiza o livro 88 Histórias da Segunda Estrela, sobre os bastidores da conquista. A maioria dos laços entre os jogadores se firmou antes daquele ano. “Edinho, Claudir, João Marcelo e Charles sempre iam lá em casa quando acabava o jogo. Essa amizade não se construiu em 88, ela foi construída lá atrás, com Titio Fantoni”, diz o então ponta direita Zé Carlos, referindo-se ao experiente técnico Orlando Fantoni, anterior a Evaristo de Macedo.

“Fantoni contribuiu muito para a formação do time de 88. Em muitos momentos foi um paizão, a ponto de substituir a figura paterna de muitos deles”, explica Flávio Novaes. No caso de Edinho Jacaré e Ronaldo, a amizade era ainda mais antiga. “Ronaldo era meu amigo desde 1981, quando subimos da segunda divisão para a primeira. Convivemos juntos em república. Saímos do interior para realizar o sonho de jogar futebol. Só saímos do Bahia depois que botamos o time campeão brasileiro”, lembra Edinho.

Sem panelinhas, as resenhas eram coletivas. As conversas em grupo no Fazendão deixavam Evaristo com a pulga atrás da orelha. “Tinha muita resenha. Professor Evaristo era meio cismado. A gente já chegava no jantar marcando: ‘Ó, todo mundo no quarto 6 que tem resenha nova’. Ele ficava olhando, mas a gente se reunia mesmo. Não só para trocar informações pessoais e ficar juntos, mas também para falar dos jogos, das dificuldades, da forma de jogar. Isso acrescentava coisas que não era Evaristo que pedia”, conta Zé Carlos.

Não à toa, o time de 88 atravessou a temporada inteira sem ter de administrar uma briga sequer no grupo. No caso de algum princípio de “incêndio”, o goleiro Ronaldo era chamado para o “abafa”. “Ninguém dava trabalho naquele grupo. Tínhamos uma CPI boa. Ronaldo era o presidente das CPIs. Ele era o mais velho. Começou no Bahia em 75. Qualquer coisa a gente chamava e ele abafava. Sabia todos os atalhos de como chegar em todo mundo”, conta Edinho.

Salários e bichos No Bahia de 88, as questões salariais, as diferenças entre quanto cada um ganhava, ficavam em segundo plano. “Se eu deixo de fazer o meu, vou continuar ganhando a mesma coisa. Claro, todos têm a sua contribuição, mas alguém se destaca mais. A gente não tinha essa bobagem de se preocupar com o quanto o outro ganha. Até porque todo mundo ganhava pouco. Só Bobô que ganhava um pouco mais”, lembra Zé Carlos.

Torcedor do Bahia desde a infância, o próprio Zé diz que se sentia realizado somente pelo fato de estar vestindo a camisa em campo. Chegou a assinar dois contratos em branco. “No meu caso especial, que era um torcedor do clube, eu já estava realizando um grande sonho. Não tinha preço eu estar jogando no Bahia porque eu fui acostumado a vir para a Fonte Nova para torcer por esse clube. Eu saí da arquibancada para jogar no Bahia. Nos dois primeiros anos, assinei sem saber quanto ia ganhar. E já era titular”.

“Eu fui campeão no Bahia ganhando dois salários mínimos. Algo como R$ 2 mil. E não enxergava Bobô como rival. Todos saímos valorizados, inclusive Bobô”, lembra o ex-atacante Charles. Naquele tempo, o pagamento dos chamados bichos, recompensas que normalmente chegavam a 20% da renda dos jogos, fazia toda a diferença nos orçamentos dos jogadores. Especialmente porque volta e meia os salários atrasavam. “No jogo do título o presidente (Paulo Maracajá) deu o bicho todo, 100% da renda. Normalmente era 20% da renda. Nas finais ele deu a renda toda. Rachou entre jogadores e alguns funcionários. A comissão, os jogadores e o pessoal que trabalhava na cozinha, lavanderia, o pessoal que cuidava do gramado”, lembra o goleador.

Por isso, o ambiente do clube era familiar. Uma família unida. “Ainda tinha isso. Os funcionários do Bahia trabalhavam com alegria. A tia da cozinha podia não ter o que comer em casa, mas ela tinha alegria porque estava cozinhando para o Bahia. Porque ela também tinha retorno da nossa parte. A gente tinha um clube feliz. Por isso que a gente foi campeão com salários atrasados”, afirma Charles.

Para manter os bichos em dia, o clube contou com torcedores e conselheiros anônimos, como a então conselheira Maria do Carmo Tanus, nome que surgiu da pesquisa de Flávio Novaes. Durante muitos anos, inclusive em 1988, ela ajudou financeiramente o clube. “Em muitas oportunidades ela pagava bichos para os jogadores. Os jogadores falam dela com muito carinho”.

Os bichos eram gordos por dois motivos: o Bahia ganhava os jogos e a torcida sempre enchia o estádio. Por causa do goleiro Ronaldo, era possível saber mais ou menos quanto cada um ia ganhar antes mesmo de a renda ser anunciada. “Todos os jogos a gente tinha a porcentagem da renda. Como Ronaldo ficava no gol, quando a bola estava lá no ataque, ele fazia o cálculo de público na arquibancada e já sabia mais ou menos qual era a renda e quanto ia dar pra cada um. No intervalo ela já falava: ‘Ó, vai dar tanto pra cada um. Vamo correr pra garantir esse bicho’. Na média ele acertava bem”, revela Charles, aos risos.

Concentração Eis a maior prova de que aquele grupo era unido: os dias de concentração para os jogos não eram considerados um martírio. A descrição é comparável à de um casamento. Um casamento feliz. “Era um prazer estar com eles. Eram momentos de alegria, satisfação, brincadeiras, amizade, companheirismo e cumplicidade”, destaca Charles. Sandro em ambiente descontraído no Fazendão de 88: "Era um prazer treinar" (Foto: Arquivo CORREIO) “Eu era solteiro na época, 20 anos. Se eu fosse sair, eu tinha que gastar dinheiro lá fora. Preferia ficar ali e gastar menos. A gente ganhava pouco, né, velho?!”, continua o atacante, recuando a bola para o volante Gil. “A gente tinha prazer de estar um com o outro. O nosso time era completo. A gente sentia prazer até de botar os reservas para jogar e dar a eles a oportunidade de viver aquilo. Os solteiros gostavam de ficar concentrados porque tinha casa e comida boa”, explica.

Era um time que não reclamava de treinar. Manchetes da época, inclusive em destaque no Instagram @88historias, dão conta de que o Bahia de 88 treinou em três turnos em pleno Carnaval. “A mentalidade dos jogadores ajudou. Gostava de treinar e tinha muita qualidade, além de humildade. Em muitos grupos os reservas não são satisfeitos. No Bahia, não. Eles entendiam aquela condição, entendiam a minha posição de treinador. Era um grupo fechado. Fechado até hoje!”, relata o técnico Evaristo de Macedo. Campeões de 88 nos dias atuais: união permanece até hoje (Foto: Felipe Oliveira/EC Bahia / Divulgação) O zagueiro Newmar esquentou o banco em boa parte dos jogos, mas é um dos que lembram daquele tempo com mais alegria. “A gente sabia das nossas limitações. Eu era reserva porque João Marcelo, aos 20 e poucos anos, vendia energia. Pereira (era) um fantástico jogador. Tinha Claudir também. Eu entrava no lugar de um e do outro e me saía bem. Não perdi nenhum jogo. Quando eu estava de fora, eu passava orientações para João. Como mais experiente, dizia: ‘João, cuidado com a antecipação aqui’”.

O livro 88 Histórias da Segunda Estrela vai mostrar que pequenas atitudes e posturas simples de funcionários contribuíram para um ambiente fechado e unido. A figura do roupeiro e massagista Alemão, por exemplo, merece destaque. Conhecido por tratar das questões espirituais, sua importância vai muito além disso.

“Na condição de roupeiro, ele pegava no pé dos jovens que subiram para o profissional. Tem uma declaração de João Marcelo que é a seguinte: ‘Ele mostrou que a gente precisava valorizar o que tinha. Mostrou que a gente tinha que ralar muito para usar uma camisa nova, um short novo e sempre trazia material usado’. Então, Alemão não dava moral de dar um meião novo para um jogador que tinha acabado de subir. Queria mostrar que os jovens deveriam baixar a bola”, explica o autor.  

Torcedor A identificação com o torcedor do Bahia era incrível. Nesse aspecto, Flávio Novaes destaca a importância do dirigente Antônio Pithon, que, em meados da década de 1980, tomou a decisão de colocar os jogos do time de juniores para acontecer nas preliminares dos profissionais. “Charles, João Marcelo e os outros colocam isso como de uma importância fundamental no crescimento deles e no contato com a Fonte Nova cheia”.

Eram tempos em que a torcida do Bahia virava jogo. “Tiveram vários jogos que a gente estava em dificuldade e, quando olhava para o torcedor, aquilo trazia uma energia diferente. Nosso time não reclamava um do outro. Era só olhar. A gente tinha prazer de estar um com o outro”, conta o volante Gil.

Por essas e outras, um campeão mundial pelo Grêmio, como Newmar, considera o título de 88 a maior conquista da sua carreira. “Eu fui campeão brasileiro pelo Grêmio, tenho Libertadores e Mundial pelo Grêmio também. Fui seleção brasileira sub-23. Mas o Bahia é o título mais importante da minha vida. A gente sentia do campo o estádio tremendo”.