Ferry Boat ou Ferry Boi? Pague R$ 25 de propina e fuja do curral pós-festas

Senta que lá vem...

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 3 de janeiro de 2018 às 00:01

- Atualizado há um ano

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- Paga R$25 e embarca agora! Paga R$25 e embarca agora!Mesmo para os que não acertaram na Mega da Virada, se tratava de uma proposta tentadora. Quem não pagaria essa bagatela por uma passagem para sair do inferno? Nós, ilustres mortais da fila do Ferry no dia 1º de janeiro, demoramos um pouco para entender como funcionava o esquema.

Primeiro eles circulavam próximo ao fim da fila e ofereciam a facilidade de embarcar na hora. Em seguida, juntavam grupos entre cinco e dez pessoas dispostas a pagar mais de quatro vezes o valor real do bilhete (R$6,70). O dinheiro de todos era recolhido e... pronto. Uma rápida conversa com um funcionário e todo mundo ultrapassava o portal de acesso ao paraíso.

Levas e mais levas de passageiros entraram dessa forma por uma passagem lateral, alguns metros distante da fila principal. Vi tudo de longe, mas, infelizmente, não consegui fazer imagens para flagrar. Ou bem guardava meu lugar na fila, ou bem praticava jornalismo investigativo. Claro, poderia também ter chamado a polícia. Polícia?

Em mais de cinco horas de espera no terminal de pedestres de Bom Despacho, não enxerguei um PM sequer. Nem PM, nem segurança da empresa que administra o sistema Ferry Boat. Apenas dois funcionários da limpeza juntavam parte dos montes de lixo deixados para trás. Não havia ninguém para organizar ou simplesmente manter informada a horda de passageiros que formava a fila. Fila?

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O caracol humano – humano é forma de dizer - iniciava nos guichês de compra dos bilhetes, saía do pátio anterior à área de embarque, dava voltas e mais voltas na rodoviária ao lado do terminal marítimo e chegava até o asfalto, a pista onde se formava a fila dos carros (esta, por sua vez, estava quase em Itaparica). Nos primeiros metros, as pessoas, digo, o rebanho acumulava-se em corredores formados por grades de proteção – ou seriam currais?

Dali em diante a multidão se organizava sozinha, como podia ou queria. Sem funcionários para organizar ou informar nada (era impossível ouvir a moça que falava no sistema de som), ficamos ao diabo dará. Ao diabo e aos “cambistas”, que continuavam a oferecer o serviço ágil que todos nós merecíamos ter. Foto: Alexandre Lyrio/CORREIO Estávamos também à mercê de ameaças dos furadores de fila. Alguns são profissionais. Outros, marginais. Tanto que, já na chegada do guichê, diante do meu protesto em voz alta, um homem de 1,90m, que, na cara de pau, foi diretamente comprar o bilhete, simplesmente olhou para trás e disse.- Tá achando ruim? Venha me bater!Eu, que nunca entrei em uma briga desde a 4ª série, não tinha condições de sair na mão com aquele brutamontes. Eu e minha namorada tentamos convocar os vizinhos de espera, mas foi em vão. O pessoal até acha ruim estar ali, mas meio que acha natural ser tratado como bovino.- Olha, isso aqui é todo ano. Não vai resolver nunca! Fazer o quê?Ainda bem que a fila também era engraçada. Dona Lourdes, de uns 60 anos, não perdia o bom humor.- São minhas últimas horas de pobreza. Estou me despedindo em grande estilo. Ainda não conferi os números da Mega. Faço questão de fazer isso depois de um banho quente, no conforto do meu lar.Uma coisa ninguém pode negar. A fila do ferry é um dos locais onde a democracia atinge o seu mais alto estágio. Do hippie ao playboy, dos recém nascidos (sim, eles são muitos) aos idosos (sim, eles são muitos), todos pagam os pecados por, além de nascer na Bahia, terem a ousadia de passar uns dias na praia. Aí já é querer demais, né?

É a democracia do infortúnio e da infelicidade. Sim, porque a gente pode até ter o bom humor de dona Lourdes, mas ninguém, nem o mais resignado passageiro, consegue ser feliz na fila do Ferry Boat na volta de um feriado ou Réveillon. Nem o garotão que aproveitou a muvuca para pegar o Zap da novinha.- Só não ligue para esse número viu, Bê! Mande mensagem... Não ligue porque aí você quebra... Tenho namorado!E os bichos, coitados? O pinscher minúsculo à nossa frente uivava de dor a cada pisoteio. Cães, gatos e papagaios só não sofreram mais que o porquinho da índia dentro de uma gaiola minúscula, nas mãos de uma criança. Incrivelmente, ele sobreviveu (pelo menos estava vivo até o embarque).

Resistimos bravamente ao atraente esquema de propina – mesmo com dinheiro sobrando no bolso - e, às 00h30, conseguimos finalmente embarcar. Daí foi mais uma hora e 20 minutos deitado no enferrujado chão do Ana Nery velho de guerra – velho é maneira de dizer. Aquilo ali é o maior meio de transporte (de tétano) do mundo. Às 2h, exausto, cheguei em casa.

Rapidamente, antes de pegar no sono, me perguntei se um dia vai existir um homem ou mulher na Bahia capaz de resolver os problemas do Ferry Boat. Pensei também o quanto o estado deveria se envergonhar de tratar as pessoas como gado.

E, finalmente, lembrei de Dante Alighieri, que n’A Divina Comédia descreve o momento em que os condenados ao inferno se deparam com o enunciado: “Vós que aqui entrais, perdei vossas esperanças”. Caberia direitinho na entrada de Bom Despacho.

Texto publicado originalmente no Facebook e replicado com autorização.