Festa, amor e devoção no Terreiro de Oxumaré, na Federação

Repórter Ronaldo Jacobina conta como foi a festa de Oxumaré, que reuniu filhos de santo de todo o país, para celebrar o Arco-Íris

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Publicado em 19 de agosto de 2018 às 20:21

- Atualizado há um ano

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São oito horas da manhã quando militantes ecológicos baianos e de outros estados se unem ao povo de santo e, juntos, hasteiam a bandeira do terreiro Ilê Ósùmàrè Aràká Àse Ògòdó, de  dinastia Ketu e conhecido como Casa de Oxumaré, na Federação. Convidada ilustre A Iyalodê Marcelline Fadikpe, sacerdotisa da cidade de Ketu, na República do Benin,  veio exclusivamente para a festa (Fotos: Renato Santana) Num púlpito, armado na área externa, defensores do meio ambiente fazem um alerta pela preservação da natureza. Convidados de fora e a comunidade local reverenciam o Arco-Íris, divindade protetora do terreiro, um dos mais antigos da Bahia e um dos mais tradicionais centros de culto afro-brasileiro do país.

A Iyalodê Marcelline Fadikpe, a mais importante sacerdotisa da cidade de Ketu, na República do Benin, que veio exclusivamente para a festa, acompanha a cerimônia ao lado do anfitrião, Babá Pecé, e de outros babalorixás e ialorixás de várias partes do Brasil que desembarcaram em Salvador na noite anterior para prestigiar a celebração que acontece sempre no terceiro sábado de agosto, em homenagem a Oxumaré, orixá que rege a casa, e é uma das mais importantes do calendário anual do terreiro. Semente do Amanhã A pequena Raicha, de 5 anos, gosta das festas no Terreiro Encerrada a cerimônia, em minutos, o cenário se modifica e surge uma enorme mesa de cerca de 50 metros de comprimento no centro do espaço que é rapidamente coberta com uma toalha dourada ricamente bordada.

Como numa linha de produção, filhos e filhas de santo vão surgindo com bandejas e mais bandejas de comidas que rapidamente lotam a superfície da mesa. Foto de Renato Santana Do lado de fora, dezenas de curiosos acompanham a agitação. Um filho de santo da casa chega até o portão e os convida a entrar. Imediatamente se misturam aos de casa e se fartam de queijos gruyére, brie, ementhal e outros frios, bolos, tortas salgadas e doces, banana da terra, farofa de carne de sol, frutas e muitas guloseimas. Tudo na maior fartura.

No barracão principal, Babá Pecé, ricamente paramentado, posa para fotografias com os visitantes. A maioria, filhos ou netos da casa que hoje comandam seus próprios terreiros em outros estados. A maioria branca. Banquete: Mesa de 50 metros onde filhos e filhas de santo, netos do Terreiro e pessoas da comunidade festejaram Oxumaré Verônica Moura, conhecida como Dofonitinha de Oxóssi, veio numa comitiva de 28 pessoas do Rio de Janeiro para reverenciar suas raízes. “Meu pai foi feito aqui, portanto sou neta da casa e, hoje, embora comande meu próprio terreiro, no bairro da Piedade, no Rio de Janeiro, necessito reverenciar minhas raízes porque o candomblé é uma religião de ancestralidade, preciso beber dessa fonte para me reenergizar”, conta. Foto de Renato Santana Respeito às Abás Na sala de jantar da casa principal, convidados de honra têm direito a todos os acepipes que são servidos lá fora, mas com serviço à la carte, feito com esmero e reverência pelos filhos da casa.  Entre um gole e outro de café, servido em louça branca e prata com o símbolo do terreiro bordado em prata, conversam animadamente. Líder espiritual: O Babá Pecé, que comanda a Casa de Oxumaré, deu as boas-vindas aos convidados. Segundo ele, 3 mil pessoas participaram da festa para o orixá regente do terreiro A distinção, não tem a ver com segregação. “Estas senhoras são abás (as mais velhas) e, pelas posições que ocupam nos terreiros, devem ser reverenciadas, porque no candomblé há um sistema de hierarquia que valoriza os mais velhos, pelas suas posições conquistadas com o tempo de santo que têm”, explica Thales Henrique de Melo, filho de santo da casa.

Enquanto o lauto café da manhã é degustado, os preparativos para uma cerimônia religiosa reservada aos filhos de santo, seguem em ritmo acelerado. Tudo é sincronizado. Cada um sabe a sua função e a executa com dedicação. Foto de Renato Santana A pequena Raissa, de oito anos, veio de Brasília com a família para a cerimônia. Enquanto aguarda o início do ritual, faz amizade com outras crianças que conheceu ali.

Raissa conta que foi “feita” aos quatro anos de idade. Filha de Oxum e Oxalá, ela diz que era muito “doentinha”, e que hoje sua saúde é “ótima”. “Eu era muito agitada também, hoje sou tranquila”, diz.

Da ladeira que dá acesso ao terreiro, não para de descer gente. Durante os três turnos cerca de 3 mil pessoas passaram pelo terreiro. Foto de Renato Santana O nigeriano Raby Inocente, que vive há três anos na Bahia, aproveita o movimento para faturar. Estaciona seu carro Meriva próximo ao portão de entrada e retira do porta-malas tecidos africanos e trajes e mais trajes finos.

Rapidamente, uma pequena turma se põe a fuçar as novidades. Um conjunto de calça e bata bordado sai por R$ 100. Em festas como essa, ele diz que chega a vender até 20 indumentárias por dia. Foto de Renato Santana Do lado de dentro, também pode se ver uma banca com acessórios e panos da costa à venda. A pequena Raicha, de apenas cinco anos, fica encantada com um colar. Mas não leva. Filha de Obá, ela diz que adora as festas do seu terreiro quando se veste com os trajes mais bonitos. “Fico feliz aqui porque encontro meus amigos”.

As crianças são muito importantes para a religião. “Elas são a semente disseminadora de nossas tradições, das nossas crenças, explica um pai que carrega o primeiro filho, de um ano e meio, nos ombros, mas que prefere não se identificar. “Meu nome não é importante, deixe para lá”, ri. Fartura: Muitas frutas também coloriram a mesa do café da manhã durante a festa religiosa Serviço religioso Os atabaques anunciam o início da cerimônia religiosa exclusiva para os filhos de santo. O Babá Pecé nos autoriza a ficar com a condição de não fotografarmos e de não escrever sobre o ritual. Claro que obedeceremos. Mas não sem antes relatar a emoção que vivi ao ouvir o primeiro acorde do clarim anunciando a entrada do babalorixá e seus filhos no salão.

Para o sertanejo aqui, criado nas tradições católicas, que o máximo que ouviu sobre o candomblé quando criança foi de que era coisa de negro, me senti privilegiado. Foto de Renato Santana Eu e meus irmãos, curiosos que éramos, morríamos de vontade de ir comer o caruru nas festas dos terreiros de Mãe Maurina ou de Pai Nezinho, os dois mais conhecidos da cidade, mas nunca nos foi permitida matar esta vontade. Nos contentávamos com os relatos de minha comadre Teresa, hoje com 90 anos, que quando atrasava para chegar no serviço, meu pai dizia: “Isso é porque passou a noite `dançando` candomblé”.

Ela ria feliz e nos contava sobre o ritual. Isso aguçava ainda mais a nossa curiosidade e fomentava nossa imaginação. Mais de 40 anos depois, cá estou vivenciando tudo isso e, tão encantado como nos tempos em que nos sentávamos em volta da sua saia rodada para escutar as histórias dos orixás. Foto de Renato Santana A música, a dança e a energia contagiam. Emocionam. Terminado o ritual, as pessoas seguem em direção aos salões do fundo onde uma feijoada completa está sendo servida. De forma ordenada, elas formam filas para se servirem no bufê.

Feijão, arroz, farinha, saladas, carnes variadas e lombo assado. De novo, muita fartura. Após o almoço, as pessoas dispersam, mas nada de descanso, minutos depois iniciam mais um trabalho religioso.

Enquanto isso começa a movimentação para os preparativos da noite, que será o ápice da festa em homenagem ao padroeiro da casa. Oxumaré. Lá pelas oito e meia da noite, a festa está pronta. Foto de Renato Santana Mesas decoradas com arranjos de rosas colombianas amarelas, castiçais com velas acesas, bufê com réchauds de prata, mesas de doces e um bolo de quatro andares decorado com o tema da festa, a natureza.

No alto do bolo, uma imagem do orixá dono da casa. As pessoas, que ao longo do dia, se vestiam de forma mais descontraída, voltam à festa, ricamente paramentadas.

Filhos da casa fazem, mais uma vez, o serviço. Circulam com bandejas de salgados e refrigerantes para lá e para cá. No barracão, os tambores ecoam e as pessoas se acotovelam para disputar um lugar lá dentro onde os filhos de santo, da casa e de fora, dançam e festejam Oxumaré. Fogos de artifício dominam o céu e o povo de santo festeja. Foto de Renato Santana Vítor Rachid Daher, o Vitinho de Oxóssi, veio de Uberaba (MG), onde comanda um terreiro com mais de 500 filhos de santo, para saudar a casa que o fez também filho de santo e depois babalorixá.

Ricamente vestido, ele agradece aos orixás a alegria que está vivendo de poder estar ali. “Não tinha como deixar de estar aqui para somar, para fortalecer a minha religiosidade e reencontrar as minhas raízes, a minha matriz. Hoje é dia de festa, amor e devoção”, emociona-se.

Me despeço dos amigos que fiz e volto para casa com uma certeza: vou voltar. Foto de Renato Santana A casa do orixá Arco-Íris

Origem O Ilé Òsùmàrè Aràká Àse Ògòdó, conhecido como Casa de Oxumarê, foi fundado há 180 anos, sendo que há 112 está localizado na Federação. Faz parte do panteão das casas matrizes que construíram a religiosidade afro-brasi- leira

Território Cultural  Em 2002, a Fundação Cultural Palmares reconheceu a Casa de Oxumarê como território cultural afro- brasileiro. No final de 2004, o terreiro foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia – IPAC como patrimônio material e imaterial da Bahia Foto de Renato Santana Projetos Sociais  A Casa de Oxumarê é engajada em projetos sociais e culturais que auxiliam no desenvolvimento e inclusão das comunidades do entorno geográfico. Comprometida na luta contra o preconceito e a intolerância religiosa, possui histórico de realização de atividades e ações de valorização do legado cultural afrobrasileiro