Festa D’Ajuda: música, fé e devoção nas práticas culturais do Recôncavo

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  • Da Redação

Publicado em 19 de novembro de 2018 às 13:55

- Atualizado há um ano

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“Capela D´Ajuda já deu sinal, quem quiser sambar apareça”. Esses são os versos imortalizados em uma das letras do lendário grupo musical Tincoãs. Nos anos 1970, o grupo foi responsável pela renovação estética da música popular brasileira a partir da imersão no universo cultural afro-barroco de Cachoeira, cidade localizada no Recôncavo Baiano, a 110km de Salvador, reconhecida com os títulos de Cidade Heroica e Monumento Nacional pelo seu rico patrimônio material e imaterial construído ao longo da História do Brasil.

Entre outros clássicos gravados pelos Tincoãs como: “Deixa Gira Girá” e “Cordeiro de Nanan”, a música “Capela D’Ajuda” é uma das que mais revela os aspectos pitorescos das práticas culturais mobilizadas nos festejos em louvor a Nossa Senhora D’Ajuda, no município, em 2018, realizada entre os dias 1º e 18 de novembro.

De um lado, são celebrados o Tríduo e a Missa em devoção a Nossa Senhora, no interior da capela construída em uma pequena colina, por volta do ano de 1595 a 1606 que originalmente era em devoção a N. Senhora do Rosário e depois em devoção a Nossa Senhora D’Ajuda; e do outro lado, a “Lavagem” e os “Ternos” realizados na parte externa da capela e pelas ruas ao som da orquestra formada por músicos das centenárias filarmônicas da região: uma junção do sagrado e do profano.

De acordo com o Presidente da Centenária Filarmônica Minerva Cachoeirana, Carlos Roberto Gomes Franco, a festa guarda uma relação muito íntima com a instituição que ele preside há anos, ele enfatiza: “é a festa que começa e termina na porta da Minerva”. Segundo Felisberto José da Silva, músico veterano e de reconhecido mérito na cidade, a Filarmônica Lira Ceciliana realizava a Festa de Santa Cecília, Padroeira dos Músicos, enquanto a Filarmônica Minerva Cachoeirana era responsável pela organização musical da Festa D’Ajuda, o que explica a primazia dessa última nos festejos conforme tradição se mantém nos dias atuais.

Diz a letra da música mencionada:

“É bem ritimado é um samba quente, Que vai mexendo com a gente, É essa tradição, Que teve no escravo a criação”

A tradição que teve no escravo a criação fortalece a concepção de um Catolicismo Popular cujo entendimento só é possível se for considerada a forma pela qual a sociedade foi construída nas urdiduras da produção dos engenhos de cana de açúcar, da economia fumageira, da condição de entreposto comercial que Cachoeira ocupava ao articular as rotas terrestres com as tropas de burros no vai e vêm para os sertões e na dinâmica portuária dos saveiros e veleiros que navegavam o Rio Paraguaçu e a Baía de Todos os Santos transportando mercadorias, pessoas e costumes.

Nesse contexto, com uma população formada por grande número de escravizados e libertos excluídos dos espaços de poder e prestígio social as irmandades religiosas leigas organizadas por esses se converteram em importantes espaços de sociabilidades e inserção política no universo social da época. O Maestro Anderson Pinheiro dos Santos, atualmente responsável pela Orquestra de Músicos que acompanham os “ternos” lembra que “os escravos e as pessoas humildes não tinham o direito de ocupar a parte interna das igrejas e por isso festejavam do lado de fora”.

Segundo Anderson, isso explica a grande participação popular durante a festa observada nos dias de hoje. Quando o festa ainda era organizada pela elite da época, homens e mulheres escravizados eram incumbidos do asseio do templo, indo pegar latas d’água nas imediações para efetivar a limpeza. Aquilo que era para ser apenas mais uma atividade laboral se converteu em um momento de muita cantoria ao som das palmas das mãos e de eventuais pandeiros: eis a origem da “lavagem” das escadarias da Capela D’Ajuda e dessa tradição na Província da Bahia, à época.

Finaliza a música doa Tincoãs com os seguintes versos:

“Os Santos, e Louvor Querendo louvar a Virgem com fervor Virgem Santa do Engenho Nada posso dar porque nada tenho Virgem Santa do Engenho Nada posso dar porque nada tenho”

Entrudos, batuques e caretas: a rua como espaço de narrativas históricas

Realizada desde o século XIX, a Festa D’Ajuda ocorre em data móvel entre os meses de outubro e novembro e tem início com o Bando Anunciador. Centenas de pessoas percorrem as ruas da Cachoeira, cantando junto com a orquestra músicas como:

... Mataram meu boi lá na Recuada, Mataram meu boi e não me deram nada! 

... Cachoeira, eu moro em Jacobina; eu moro em Jacobina, Cachoeira é a minha terra!

 Essas letras ressaltam aspectos do cotidiano desde algum proprietário que teve o seu gado roubado (provavelmente, para saciar a fome de escravizados ou egressos do cativeiro) em um contexto de grande exploração e exclusão social característicos das sociedades escravistas ou de evidenciar a relação da cidade da Cachoeira com outras regiões da Bahia, haja vista a posição de entreposto comercial desempenhado pela cidade até meados do século XX, ao que o geógrafo Milton Santos classificou como uma das primeiras redes urbanas do Brasil.

Mas outras letras também se revestem da sátira e da malícia e apelo ao “duplo sentido” das palavras, como é possível observar nas letras:

Versão ordeira e dos “bons costumes” ... Ai cebola tempero de maniçoba, fui pro mato caçar taioba, encontrei lagartixa e cobra...  -Versão Cantada nas ruas pelos foliões:  (Ai cebola tempero de buceta é rola, ai tiririca tempero de buceta é pica)

Versão ordeira e dos “bons costumes” ... Pé dentro, pé fora: quem tiver pé pequeno vai embora! -Versão cantada nas ruas pelos foliões Pau dentro, pau fora: quem tiver pau pequeno vai embora

Carlos Jorge Rodrigues, mais conhecido por “Balainho” é um músico que toca a quarenta e nove anos na festa e ressalta que: “a participação do povo junto com a banda é muito grande - é intensidade do início ao fim”. Entre tantas letras ele destaca a sua preferida: “dá no nego, dá no nêgo; no negô você não dá!”. Mas qual era a percepção da sociedade do século XIX e início do século XX sobre esse tipo comportamento nas ruas.

Ao longo da história as autoridades sempre viram com muita preocupação a aglomeração de negros (escravizados ou libertos) e da população pobre, em festas na Bahia. Houve grande esforço, por exemplo, para acabar com os entrudos que eram festejos considerados bárbaros e violentos que ocorreram durante os séculos XVIII e XIX. Mesmo com a sua origem européia, o entrudo estava associado às camadas populares: uma festa sem limite e de lambança protagonizada pelos pobres. Para horror das autoridades, o entrudo se transformou na forma brasileira de fazer o carnaval com a presença de africanos, índios e das camadas populares.

Além disso, os batuques (nome genérico para qualquer festa realizada por escravos) enfrentavam forte resistência por parte das autoridades, em especial o Conde da Ponte que impunha sérios limites a esse tipo de manifestação. Entretanto, o Conde dos Arcos se mostrou mais permissivo aos batuques atendendo pedido e liberando o uso de caretas, em 1810. Deve-se ressaltar ainda o clima vivido na Província da Bahia na primeira metade do século XIX, marcado pela eclosão de inúmeras revoltas escravas levando as autoridades a “negociar” ora com restrição, ora com maior permissividade quanto ao controle dos cativos. Com efeito, a presença de caretas na Festa D’Ajuda constitui um traço marcante. Os cabeçorras na condição de sátira aos nobres; o Mandú figura emblemática da cosmovisão afro-brasileira presente em alguns terreiros de candomblé, mascarados e os diversos tipos de fantasias utilizados pelos foliões são traços indeléveis dessas criações e (re)criações da cultura popular.

Patrimônio Imaterial da Bahia: tradição, salvaguarda e participação popular

Maria Aparecida, carinhosa e respeitosamente conhecida como Papapá desempenha o papel de Secretária de Patrimônio da Irmandade de Nossa Senhora D’Ajuda: “paixão e devoção” são mais que palavras, representam, segundo ela, a sua trajetória de vida dentro da irmandade. Por isso, o esforço em garantir o registro junto ao Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (IPAC) da Festa D’Ajuda como Patrimônio Imaterial do Estado da Bahia para que as outras gerações possam conhecer e viver as suas raízes. O registro foi oficializado pelo Decreto nº 17.590 de 04 de maio de 2017. Diz o Art. 1º do referido Decreto: “ficou registrado no Livro de Registro Especial dos Eventos e Celebrações, a Festa de Nossa Senhora D’Ajuda, manifestação cultural da Cidade de Cachoeira, como Patrimônio Imaterial da Bahia”.

Além do mencionado registro, a secretária executiva da Irmandade, Andrea da Rocha destaca a importância da salvaguarda desse patrimônio. De acordo com ela, a irmandade tem se preocupado em manter os elementos tradicionais que demarcam as características históricas e culturais da festa de modo a garantir o máximo de originalidade e não permitir alterações que venham descaracterizar a tradição.

Em 2018, foram realizados onze ternos, ao longo da primeira quinzena de novembro. No segundo domingo do mês, foi realizada a Lavagem das Baianas e o Terno do Silêncio que ocorre à meia noite e amanhece o dia; no terceiro domingo, o ponto alto da festa, ocorre o Terno da Alvorada, que sai às 05h00 da manhã, o mais concorrido de toda celebração quando as ruas da cidade da Cachoeira são inundadas pelo ritmo, harmonia e melodia da orquestra de música para alegria do “povão” como relata Claudio Conceição, folião que é apaixonado pelo Terno da Alvorada e completa: “é festa participativa da população de cachoeira, onde o povão pode brincar com tranquilidade”.

Expressão popular dos antigos batuques, (re) criações e apropriações realizados pela cultura popular no âmbito do que se convencionou chamar de Catolicismo Popular, algumas irmandades religiosas têm resistido ao tempo – a Festa D’Ajuda é uma dessas expressões onde o presente se apropria do passado para fortalecer as formas de ser, fazer e estar no mundo – é a cultura! Existe uma pergunta inquietante: a tradição evolui?

Não temos uma resposta segura para esse questionamento, mas se a tradição também está suscetível ao movimento que as suas mudança venham em forma de resistência diante dos velhos e novos desafios com que se deparam as classes populares e trabalhadora do nosso país: “Capela D’Ajuda já deu sinal, quem quiser sambar apareça!”

Fábio Pereira é mestre em História/Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e Diretor pro tempore do Colégio Estadual Padre Alexandre de Gusmão

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