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Fica, Lázaro! Fiéis fazem campanha para permanência de padre


 

Despedida será no dia 5, na Igreja do Rosário dos Pretos, onde missa tem atabaque e timbau

  • Fernanda Santana

Publicado em 31/01/2019 às 10:10:00
Atualizado em 19/04/2023 às 10:00:07
. Crédito: Betto Jr/CORREIO

Talvez seja única na história a noite de 27 de dezembro de 2018. A imagem de Nossa Senhora acabara de chegar ao Largo do Pelourinho quando o público apela ao homem de batina roxa: “Padre Lázaro tem que ficar”. Semanas antes, chegou à Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos o aviso da transferência do pároco. Desde então, começaram – fiéis e a Irmandade dos Homens Pretos, administradora da igreja – a campanha: deixem que Lázaro fique. 

Há sete anos, Lázaro chegou à Nossa Senhora às Portas do Carmo, conhecida como Rosário dos Pretos, para substituir Gabriel dos Santos, também negro. Embora fosse o padre Gabriel bastante próximo dos devotos, Lázaro, 52 anos, rapidamente ocupou o vazio deixado. Principalmente porque reforçou os pilares da diversidade e da resistência, essenciais a uma igreja fundada em 1685 por negros libertos e escravizados. Mais que isso: compreendeu esses alicerces.

No caminho para o altar, uma senhora, de passagem, cutuca o padre. “Para onde esse senhor for eu vou”, diz. “Tá vendo? É essa a resposta dos fiéis”, provoca Adonai Passos, prior (chefe) da Irmandade, logo após a reportagem ter perguntado o que fez e faz de padre Lázaro tão querido a ponto de criarem uma campanha pela sua permanência. O senhor em questão apenas agradece e ri. Prometeu obediência à Igreja, “mesmo que o coração doa”. A Irmandade pensa absolutamente o contrário.“Não estou conformado até hoje”, rebate Adonai. Já se envolveram na campanha #ficapadrelázaro, criada em dezembro e popularizada nas redes sociais, de intelectuais a antigos visitantes a fiéis, moradores do Centro Histórico, artistas, como Regina Casé e Fernando Guerreiro, e líderes religiosos. Pai Raimundo de Xangô, do Centro Umbandista Paz e Justiça, por exemplo: “O padre Lázaro tem que permanecer em virtude de seu trabalho contra a intolerância religiosa”. Um pedido formal também foi enviado à Arquidiocese de Salvador.

O presidente da Fundação Gregório de Mattos e ator Fernando Guerreiro vai além: "É uma tragédia". "É um padre que criou um vínculo com a comunidade. É um grande líder e de fácil trato. Ele tem relação com a cultura popular identitária", opina. No atual momento da Igreja Católica, com cada vez mais distanciamento dos fiéis, enxerga até contrassenso no movimento. "Logo no momento em que a igreja quer fidelizar, por que isso?", questiona. 

Não há uma regra específica para transferência, mas, em geral, o tempo mínimo de permanência de um padre numa só paróquia é de seis anos e o máximo de nove. Como Lázaro, a partir do final do século 18, conforme memória da Irmandade, todos os padres foram negros. Aos brancos, somente atividades administrativas. Padre Lázaro celebra missa: fiéis não querem dar 'tchau' (Foto: Betto Jr/CORREIO) Na terça-feira (22), dia de rezar para Santo Antônio de Categeró, o CORREIO esteve na Rosário dos Pretos. Os atabaques e agogôs ainda tocavam quando a historiadora Dora Silva, 45, brincou: “Você conhece padre Lázaro? É uma pessoa humilde, precisa ficar aqui. A trama para que ele fique já foi feita”. Para entendê-la e justificá-la, é mesmo preciso conhecer Lázaro, como cidadão comum e enquanto homem de fé. Os dois se complementam. 

À espera do fico   Lázaro Silva Muniz chegou à Rosário por ordem das circunstâncias. Como assumiria a Catedral Basílica de Salvador, em 2012, a Rosário dos Pretos seria uma das três capelanias onde deveria presidir a liturgia. Integrou-se à igreja à medida que começaram a enxergar, em Lázaro, mais um símbolo de resistência para o templo. O homem negro, nascido na Avenida Vasco da Gama e um dos dez filhos de Osvaldo e Maria de Lurdes enfim parecia ter chegado onde precisava chegar.

Na infância, Lázaro viveu as limitações de uma vida humilde. A renda vinha dos acarajés vendidos pela mãe e dos sucessivos empregos e trabalhos temporários do pai. Sim, Lázaro, o padre, é filho de uma baiana de acarajé. “Ela entendia muito do Candomblé, mas não tinha relação direta, era católica. A lição foi sempre o respeito às diferenças”, lembra o padre. Não passam muitos minutos sem que padre Lázaro conte sua história, na sacristia, sem interrupções carinhosas.  

Quem chega à Rosário parece querer chegar também a Lázaro. Como Dona Rita Anastácia, 82. A aposentada sai de Lauro de Freitas, percorre 31 quilômetros, para vê-lo.“É maravilhoso e prega tão bem. Vai ser uma perda a saída dele daqui, uma perda...”, lamenta.Nos 21 anos de vida religiosa, nunca viveu algo parecido. “Mas eu não posso dizer por que eles querem que eu fique, que eu continue. Só eles [os fiéis] podem dizer”, ri o padre sobre a campanha. E os fiéis dizem.

Mesmo os turistas estranham a saída de Lázaro e entram na campanha. A atriz Teresinha Elisa, 78, ex-Trapalhões, por exemplo. Há 30 anos, vai à Rosário dos Pretos. “Tudo aqui é espetacular e grandioso. Não tem como, na Bahia, ser diferente. E o padre prega tão bem, né? É simpático”, opina. Logo o primeiro atabaque toca, seguido do cumprimento do padre: “É todo mundo de Salvador aí?”. A igreja estava lotada de turistas, como costuma estar em todas as "terças da benção".

Assim continuará até próximo dia 5, último dia de padre Lázaro ali. Depois, seguirá para a Paróquia de Santa Cruz, no Engenho Velho da Federação. “O lugar dele é aqui”, pede Adonai. Ou será que não? A reportagem conversou com o arcebispo de Salvador e primaz do Brasil para entender as possibilidades. As transferências, explica, são realizadas a partir da necessidade de cada paróquia, e a campanha é bem recebida. No entanto, ressalta:  “Se cada vez que houver uma manifestação semelhante o bispo voltar atrás de uma transferência, ele acabará não transferindo mais ninguém, nem quando um sacerdote achar que é hora de mudar de paróquia”, explica dom Murilo Krieger.Por enquanto, ele fica. De todo modo, é uma campanha que muito pode mostrar sobre a Igreja e o distanciamento de fiéis. É o que explica o Frei Jorge Rocha, professor de Teologia da Fraternidade Frei Capuchinho. "Essa campanha é boa, porque demonstra o reconhecimento de um padre. A questão, na verdade, é que os padres fazem um voto de obediência. Está na identidade do padre", diz. No caso de Lázaro, diz o Frei, a relação entre pároco e devotos é como sempre deveria ser: o padre é reconhecido como um verdadeiro guia espiritual.

Um clamor de justiça está no ar  Os santos e mártires da Igreja Nossa Senhora às Portas Carmo são negros. São também negros seus arquitetos, suas referências e suas raízes. Toda noite, por pelo menos 80 anos, negros libertos e ainda escravizados trabalharam na construção. Os estudos divergem, mas apontam para o fim da obra em 1704. Ali, a Irmandade dos Homens Pretos poderia ter um reduto de resistência contra o seu algoz, que tanto impedia e marginalizava os rituais e crenças africanos.  Apresentação do coral e músicos na missa (Foto: Betto Jr/CORREIO) A Igreja no Largo de Pelourinho é uma exaltação à cultura afro-brasileira. Os cânticos católicos são acompanhados de agogôs, timbal e atabaque. A cultura afro-brasileira está nos mínimos e principais detalhes. Às 18h das terças, conhecidas como “terças da benção”, da escadaria aos pés do altar, é tomada por fiéis e turistas. É o dia mais cheio na igreja mais negra de Salvador. Outros, como a Missa de Oxóssi, também merecem destaque. É quando o amém também pode ser axé, como escreveu Equede Sinha, no livro A Mãe de Todos, organizado com pesquisa do jornalista Alexandre Lyrio e fotografia de Dadá Jaques, ambos da equipe do CORREIO. 

Não por isso é uma “Igreja do sincretismo”. “Lutamos para a igreja ser o que é hoje. São várias resistências nossas”, pontua Anália Santana, integrante da Irmandade dos Homens Pretos e pesquisadora da organização.

Os filhos de santo são bem recebidos para dançar para os orixás e balançar o Ijexá – o ritmo dos terreiros. Assim foi desde o início, embora os católicos mais conservadores questionassem os elementos afro-brasileiros. Em 1672, por exemplo, 13 anos antes da criação da Irmandade, foi proibido o uso de atabaques em toda cidade. Integrantes da Irmandade e fiéis falam em “racismo institucional”, combatido também desde o princícipio, quando as primeiras pedras chegaram ao Largo do Pelourinho para a construção do templo.“Não existe ‘missa do candomblé’. As pessoas confundem muito isso. Os rituais continuam sendo católicos, mas com influências afro-brasileiras”, explica Jaime Nascimento, historiador. Na verdade, as irmandades são criadas justamente para “se proteger, se ajudar”. ”Os africanos conheceram logo na chegada dos portugues aqui e se afeiçoaram a Nossa Senhora dos Rosários”, conta Jaime. Na verdade, o surgimento de irmandades católicas é outro símbolo de resistência social, cultural e política, uma vez que, somente reunidos, poderiam convocar sua espiritualidade sem o cabestro do escravizador.  Clima é de alegria entre fiéis na celebração: resistência (Foto: Betto Jr/CORREIO) A história dos negros então escravizados ou recém-libertos possibilitou a diversidade. Aconteceu ali, na Rosário dos Pretos, o surgimento da Irmandade dos Martírios, transferida para a Barroquinha, onde surgiu um dos mais importantes Candomblés, o da Barroquinha. O catolicismo compulsório não conseguiu, nem consegueria, aniquilar todas as manifestações de espiritualidade. "Nós [da Igreja Católica] já sofremos [intolerância] e fizemos outros sofrerem. A luta da inclusão é de hoje e para o futuro", diz padre Lázaro Muniz. No caso das transferências, todas as particularidades da Rosário dos Pretos serão levadas em consideração, garante dom Murilo - como também são no caso de outras igrejas. Mas ninguém quer ouvir falar em transferência: Padre Lázaro precisa ficar ali. A Rosário é seu lugar. 

*Com supervisão do chefe de reportagem Jorge Gauthier