Flavia Azevedo: Mulheres não são piranhas mentirosas

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 7 de abril de 2017 às 14:50

- Atualizado há um ano

Por volta de 2008, morei numa cidadezinha do Norte Fluminense. Mais ou menos oito horas de ônibus da capital, Rio de Janeiro. Percurso que fiz sozinha, dezenas de vezes, durante a noite, em ônibus razoavelmente confortáveis e com aquelas paradas que eu adoro em postos de beira de estrada. Tudo certo. Amo viajar desacompanhada, durmo bem, faço amizades, gosto de ver o sol nascer no caminho. Perfeito, não fossem os tarados.

Entendi o problema, logo numa das primeiras viagens, ao acordar com o bafo do idoso da poltrona ao lado. Abri os olhos no meio da noite e ele estava lá a milímetros do meu rosto, quase me tacando um beijo na boca. Dei um grito de susto e, iluminada por algum ser superior, comecei a gritar que o senhor estava passando mal. Acordei o ônibus inteirinho, aos gritos de “socorro, gente, o moço tá passando mal!!!”.

Fomos cercados por passageiros preocupados e eu afirmando que tinha visto uma convulsão, que era um absurdo um idoso naquelas condições viajar sozinho, que eu ia trocar de poltrona porque não assumiria a responsabilidade caso aquilo voltasse a acontecer. O tarado es-tá-ti-co. Teve que dizer que já estava bem e agradecer pela preocupação de todos. Olhei para a cara dele e ri, debochada, algumas vezes. Ele, puto. Passou.

Outra vez, acordei com a minha mão direita colocada sobre o pênis do rapaz ao lado. Ele segurava a minha mão e esfregava sobre a calça. Dessa vez, não teve humor certo. “Tarado! Estuprador!”, eu dizia, entre outros desaforos que é melhor não publicar. Mobilização mínima no ônibus. Eu sabia: uma mulher sendo abusada não é algo que comova muita gente (fora o “quem é essa vaca acusando o rapaz?” que, sabemos, ronda a cabeça das pessoas).

Meus gritos, alguns murmúrios femininos, alguém sugeriu que eu trocasse de poltrona. Ele acabou indo para a última fileira e terminando sozinho a viagem. Na parada pro lanche, criei uma pequena confusão dizendo que se ele descesse eu chamaria a polícia. O bicho ficou lá, no escuro, quieto, sozinho. Ao chegar no destino, foi o último a descer, provavelmente. Eu já tinha ido embora com o meu ex-marido que foi me buscar na rodoviária.

Desde então, passei a conversar com os motoristas antes de embarcar. Ouvi de todos eles que era “muito comum” isso acontecer nas viagens noturnas. Sendo assim, eu entrava no ônibus e procurava o meu assento. Caso fosse ao lado de um homem, cumprimentava a todos e pedia para trocar com alguém de forma a conseguir viajar ao lado de uma mulher explicando o porquê, bem direitinho.

Algumas vezes, outras mulheres sozinhas fizeram o mesmo. É comum, entenderam? Comum! Frequente. Acontece muito. Em diversos cenários. Isso pra dizer que, se você é uma mulher, e o seu primeiro pensamento é duvidar da palavra de uma outra mulher quando ela diz que foi assediada, das duas uma: você não anda por aí ou você anda de olhos fechados para o que acontece enquanto você anda por aí. Ou, então, essas coisas que acontecem também com você lhe perturbam tanto que você prefere negar. Mas as coisas não param de acontecer, você sabe disso.

Mulheres não são piranhas mentirosas. Veja bem, eu posso não ter visto a cena (na maioria das vezes, não vemos o sufoco da outra). Eu posso não ter provas. Eu continuo não podendo julgar e condenar o outro. Estou falando do lugar de onde partimos ao ouvir uma notícia. Estou falando que devemos entender a quem damos a nossa solidariedade, num primeiro momento. Estou falando sobre com quem nos identificamos ao saber desse tipo de denúncia.

Há homens e mulheres canalhas, há gente ruim de todos os gêneros e idades. Há mulheres, sim, que acusam injustamente e essas vão abusar da sua boa fé. Há mentirosos e mentirosas, mas há o “mais provável”, há as coisas que acontecem repetidamente, há essas coisas que precisamos resolver.

A figurinista estava falando a verdade naquele texto/denúncia. Eu estava falando a verdade naquele ônibus. As meninas que acusam os padrastos, pais e parentes, normalmente estão falando a verdade. As alunas que acusam os professores, provavelmente estão falando a verdade. Porque é comum, entendeu?

Essas mulheres precisam que você acredite. Você precisa que outras mulheres acreditem em você. Por mais absurda, por mais estranha que pareça a situação, a minha tendência será sempre acreditar porque, dificilmente, uma mulher denuncia um abuso apenas para “chamar atenção”. Acabou. Por mim, não passarão.

Flavia Azevedo é produtora e mãe de Leo