Floresta Amazônica: o relato de quem passou 10 dias no meio da selva

Construí uma casa, dormi com aranhas e descobri como vivem as mais de 4.000 famílias que moram na Reserva Extrativista Tapajós Arapiuns

  • Foto do(a) author(a) Rafaela Fleur
  • Rafaela Fleur

Publicado em 4 de junho de 2018 às 22:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Gustavo Nénão/Divulgação

Foi na selva. Não perto, nem na cidade vizinha: no meio dela, dentro da Amazônia. Passei dez dias sem celular, sem cama, sem energia elétrica, ao lado de nove desconhecidos, na Reserva Extrativista Tapajós Arapiuns (Resex), uma unidade de conservação no estado do Pará que abriga 74 comunidades. Fica a três horas de Santarém, terceiro maior município do estado. Foi, de longe, a experiência mais transformadora de minha vida.

Cadastre seu e-mail e receba novidades de gastronomia, turismo, moda, beleza, tecnologia, bem-estar, pets, decoração e as melhores coisas de Salvador e da Bahia:

Era viagem turística? Era. Mas foi turismo de base comunitária, onde o princípio básico era ajudar a melhorar - ainda que de forma pequena - as condições de vida das pessoas que moram nessa região.  E não, lá não tem apenas índios. São mais de quatro mil famílias distribuídas pelas comunidades.  A ideia era levar tinta e pintar só as crianças, mas elas não deixaram barato: nos encheram de cores também (Foto: Gilberto Dutra/Divulgação) Onde fiquei Dentro da imensidão verde, meu lar foi o Centro Experimental Floresta Ativa (Cefa), um polo de referência para a capacitação e o desenvolvimento de projetos e tecnologias socioambientais replicáveis para toda a floresta. Lá tem viveiro, sistema de hortaliças orgânicas, criação de abelhas, bosque agroflorestal com diversas espécies nativas, piscicultura e geração de energia solar.  Mandala dos pirarucus, lá na entrada do Cefa (Foto: Gilberto Dutra/Divulgação) Ali, na comunidade do Carão, tudo era muito simples e, ao mesmo tempo, igualmente grandioso. As refeições eram feitas pontualmente, sabíamos que ela estava na mesa quando o gongo tocava.  E que comida, viu? A cozinheira, Dália, caprichava no tempero. Lá também provamos o verdadeiro açaí, orgânico, adoçado com mel e acompanhado de farinha de tapioca crocante. Açaí de verdade, adoçado com mel e acompanhado de farinha de tapioca (Foto: Rafaela Fleur/Divulgação) Os quartos, feitos com tapumes de madeira, não tinham camas. Cabiam três redes e muitas aranhas. Algumas tinham quase o tamanho de minha mão. Nada foi problema: as redes fizeram um bem enorme para a minha coluna já na primeira noite de sono.  Siga o Bazar nas redes sociais e saiba das novidades de gastronomia, turismo, moda, beleza, decoração e pets: As aranhas, das quais sempre tive pavor, se tornaram inofensivas quando percebi que elas fugiam ao menor sinal de gente, bastava encostar com um cabo de vassoura. Exceto a caranguejeira, que pode pular em você caso se sinta ameaçada. Mas as moradoras do Cefa ou as guias de turismo ensinam como identificá-las e estão sempre a postos para acudir e informar.

Como cheguei Antes mesmo de sair de Salvador, fui apresentada ao primeiro desafio: chegar. Parti no dia 12 do mês passado, um sábado. Às 17h30, peguei um avião para Manaus. Aterrissei na capital do Amazonas por volta de 1h30 (o fuso horário de quase todo o estado é uma hora a menos do que no restante do país. Ou seja, meu relógio biológico já apontava para as 2h e tantas e passei a noite lá.

No dia seguinte, voei às 9h para Santarém, no Pará, onde desembarquei às 11h30. Depois disso, foram cerca de 40 minutos de van até Alter do Chão. Não deu tempo de apreciar a beleza das famosas praias de águas doces e quentes, que rendem fama ao distrito. Ali começava a parte fluvial da odisseia. 

A bordo de  uma siqueira, uma espécie de barco de madeira com capacidade para 15 pessoas, seguimos em direção à Resex. Dentro da siqueira é assim, cabe até rede (Foto: Rafaela Fleur/Divulgação) A imensidão do Rio Tapajós impressiona. Após alguns minutos navegando, alcançamos o Arapiuns, seu afluente:  juntos, são gigantes. É impossível enxergar as margens. Ou algo além deles. Naquele momento, meu cansaço de tantas horas de viagem, desapareceu. O sentimento era de transbordar junto com as águas.  Parte da imensidão do Tapajós-Arapiuns (Foto: Gilberto Dutra/Divulgação) Conhecendo a comunidade Uma coisa que percebi logo de cara, principalmente porque moro em cidade grande, é que as pessoas são muito calmas.  Falam pausadamente e vivem sem correria. Junto com a tranquilidade, vem a gentileza e a empatia. De início, até pensei que estivessem nos tratando assim porque éramos turistas, mas percebi, pouco tempo depois, que o comportamento é uma questão de essência.

No Cefa, eles dividiam tudo e sempre pensavam coletivamente. Quando cheguei e vi que as pessoas eram extremamente simples, pensei que ficaria triste por elas e impotente por não poder mudar aquela realidade. Levei um tapa na cara: elas não querem nada além do que já têm. Repetem que são felizes e que não falta nada. Exceto, claro, boas escolas. Dança do tipiti sendo apresentada pela tribo Kumaruara, que vive na comunidade de Vista Alegre (Foto: Fernando Schlaepfer/Divulgação) Os colégios que visitei se resumiam a uma sala, sem reboco e sem ventilação, em situações assustadoramente precárias. Isso elas fazem questão de melhorar - e sozinhas, já que o governo local, segundo a comunidade, finge que elas não existem. A falta total de recursos não impediu que as escolas nos recebessem com danças de carimbó e cantorias, que vinham sempre com pedidos de desculpas por não terem nada melhor para oferecer. Aluno do escola de Pedra Branca, uma das comunidades da Resex, pouco antes de dançar carimbó (Foto: Fernando Schlaepfer/Divulgação) Trabalho comunitário Todos os dias tínhamos alguma atividade para fazer. E não falo de passeios, era colocar a mão na massa mesmo. Essa foto abaixo, por exemplo, foi tirada quando estávamos ajudando a construir o telhado da casa de Seu Lori, um dos líderes do Cefa. Construindo o telhado da casa de Seu Lori (Foto: Gilberto Dutra/Divulgação) O grupo se dividiu: enquanto cinco ficavam no alto, se equilibrando em madeirites, outros juntavam as palhas, desviando dos espinhos. A experiência foi, sem dúvida, uma das mais enriquecedoras da viagem. Seu Lori, que nos tratou de forma tão gentil, nunca teve uma casa. A sensação de que eu estava participando diretamente da realização de algo tão importante para ele foi indescritível.

Outra lembrança marcante foi fazer farinha de mandioca. Foram quase cinco horas descascando, deixando de molho, peneirando (várias vezes) e torrando, em um forno gigante com temperatura altíssima e muita fumaça. É um trabalho extremamente desgastante, porém, pouquíssimo valorizado: eles vendem um quilo de farinha por R$ 5. Peneirando a mandioca logo depois dela descansar por algumas horas no tipiti, um tipo de espremedor de palha usado para secar raízes (Foto: Rafaela Fleur/Divlgação) Outra atividade, que também exigiu muito trabalho braçal, foi plantar andiroba. Pegamos uma quantidade enorme de terra, crua e sem adubo. Com uma enxada, começamos a arar. Depois disso, separamos 200 mudas e plantamos. Muda de andiroba pronta para ser plantada (Foto: Rafaela Fleur/Divulgação) Passados os dez dias, observei que não precisava de muito para ser feliz. Percebi, também, que o mundo não acaba porque a gente não responde uma mensagem no WhatsApp e que os nossos problemas são só os nossos problemas. Além do umbigo existe um mundo inteiro. Já em Salvador, concluí: o coração é o Norte.

É bom saber 

Roupas Simples e confortáveis, além das de banho. À noite faz frio, leve calça e casaco. Nos pés, bota de trilha, tênis e chinelo.

Higiene pessoal Leve tudo, de pasta de dente até sabonete. Capriche no repelente e leve mais de uma toalha. O clima  é muito úmido e as coisas demoram para secar.

Roteiro Viajei com a Iris Social (@social.iris), única agência que trabalha com o Cefa. O pacote com tudo (inclusive comida) menos avião é R$ 2.600 para uma semana. Para outras opções de turismo comunitário, na Resex ou em Santarém, tem a Turiarte (@turiarte_amazonia).

*Com orientação do editor Victor Villarpando