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Paulo Sales
Publicado em 23 de maio de 2022 às 05:08
O jornal espanhol El País publicou recentemente a carta de uma leitora de Barcelona. É um relato dramático de uma moça de 29 anos, chamada Silvia Fernández Belmonte, que explicita a sensação de desalento que toma conta de toda uma geração: “Vivo sem possibilidades. Não me interpretem mal: tenho estudo, experiência, atualmente trabalho (ainda que não dê para viver só nem alugar uma habitação), mas minhas possibilidades de viver são nulas. Estou condenada a ver como a vida passa inexoravelmente segundo a segundo, dia a dia.”
Silvia prossegue: “Todos nós (os jovens adultos) estamos vendo como a vida nos escapa e a ninguém parece importar que sejamos obrigados a trabalhar 13 horas ao dia por um salário que não sobe dos 15.000 euros anuais, por mais que peçamos, que não tenhamos possibilidades de emancipação, de ser mães e pais, de viver.”
É dilacerante perceber o desespero de uma jovem mulher, ainda mais em um país desenvolvido, com ampla rede de proteção social à disposição. E, pior ainda, ter plena consciência de que ela ainda pode ser considerada uma felizarda, sobretudo quando sua situação é comparada ao cenário visto em países subdesenvolvidos, como o Brasil. São gerações desperdiçadas, vivendo sem expectativa de uma reviravolta a curto prazo, com um horizonte exíguo pela frente.
O fato é que há algo de muito errado na maneira como as civilizações se desenvolveram, alicerçando-se na primazia do trabalho assalariado e numa desigualdade brutal que permanece, mesmo na maioria dos países desenvolvidos. E me refiro, aqui, não apenas às distorções da economia de mercado e às políticas que penalizam pobres para enriquecer uma parcela mínima da população.
Falo de vida mesmo. Do tempo que desperdiçamos em rotinas estafantes de oito a dez horas por dia, cinco ou seis dias na semana. Dos trabalhos enfadonhos no mundo corporativo, com suas reuniões sem sentido e seus processos incompreensíveis. Do trabalho braçal, muitas vezes aviltante. Das aulas inúteis que abordam assuntos que não apreendemos e com os quais nunca mais teremos que conviver. Meses, anos, décadas se sucedem e nesse processo deixamos para trás a essência do que é viver: o direito ao prazer, ao ócio criativo, à cultura, à descoberta do mundo.
Vejo minha filha, aos 21 anos, começar a sua carreira no Direito. É uma privilegiada, por estar em uma boa faculdade e ter condições de, em breve, conseguir um trabalho bem remunerado e que satisfaça suas aspirações. Há milhares de jovens como ela sem a mesma perspectiva – aliás, sem qualquer perspectiva. Correm atrás de empregos que não existem, observam com resignação e desencanto o fim da própria juventude e pressentem que terão problemas no futuro.
Em Sapiens, Yuval Noah Harari fala dessas pessoas que ajudam o mundo a seguir em frente, mas não recebem em troca nenhuma compensação: “A história é o que algumas poucas pessoas fizeram enquanto todas as outras estavam arando campos e carregando baldes de água”. Hoje, sequer há campo para arar ou baldes para carregar. São seres humanos – sobretudo os que não tiveram acesso a boa instrução – que se tornaram dispensáveis, inúteis e invisíveis aos olhos do mercado. Só no Brasil são milhões deles.
Reproduzem, nos dias atuais, a sina de miséria e inconformismo com a própria insignificância vista em livros como As Vinhas da Ira, de John Steinbeck, com sua saga de iniquidades em meio à Grande Depressão. Ou como Levantado do Chão, de José Saramago, com as sucessivas gerações da família Mau-Tempo perpetuando a própria indigência, como castas eternamente destinadas à escória:
“Estes homens e estas mulheres nasceram para trabalhar, são gado inteiro ou gado rachado, saem ou tiram-nos das barrigas das mães, põem-nos a crescer de qualquer maneira, tanto faz, preciso é que venham a ter força e destreza de mãos, mesmo que para um gesto só, que importância tem se em poucos anos ficarem pesados e hirtos, são cepos ambulantes que quando chegam ao trabalho a si próprios se sacodem e da rigidez do corpo fazem sair dois braços e duas pernas que vão e vêm, por aqui se vê a que ponto chegaram as bondades e a competência do Criador, obrando tão perfeitos instrumentos de cava e ceifa, de monda e serventia geral.”