'Gosto dos meus pecados', diz a cantora Elza Soares

Artista ganha biografia assinada por Zeca Camargo e pede para não ser descrita como santa

  • Foto do(a) author(a) Laura Fernades
  • Laura Fernades

Publicado em 1 de dezembro de 2018 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Divulgação

“Por favor, não me coloque como santa!”, pediu a cantora carioca Elza Soares, 88 anos, antes do jornalista mineiro Zeca Camargo, 55, começar a escrever sua biografia: Elza (LeYa | 384 páginas | R$ 55). Questionada sobre o motivo do pedido, a cantora não titubeou na resposta. “Lógico! Você já viu alguém aqui ser santo?”, disse ao CORREIO, durante o lançamento do livro no Red Bull Music Festival, em São Paulo, na última segunda-feira (26).

“Como gosto dos meus pecados, da minha vida livre, desse mundo sem proibições, eu gosto é de viver. E como santa eu vou ter que usar véu, não é isso que eu quero. Sou um ser normal, fazendo tudo o que um ser humano precisa fazer. É assim que eu vivo”, garantiu a diva, minutos antes de começar a autografar os livros de um jeito bem particular: enquanto Zeca assinava com a caneta, ela marcava cada uma das biografias com o batom do seu beijo.

Sem nenhuma pretensão de ser santa, portanto, Elza não hesitou em conversar com o autor da biografia sobre assuntos delicados de sua vida. Ou seja, além da trajetória profissional desta que é uma das principais cantoras da música brasileira, o livro resgata momentos intensos vividos pela artista que apanhou do pai, foi mãe adolescente, perdeu dois dos seis filhos, e enfrentou uma relação conturbada com Garrincha (1933-1983), um dos ídolos do futebol brasileiro.

Também está lá no livro a força e o amor de Elza pela vida, afinal não é qualquer um que enfrenta tantas adversidades e segue solar. Apesar de ter cantado a sua dor, de ter assumido que entrou em depressão, usou drogas e quase desistiu da carreira, Elza garante que hoje “não seria uma cantora triste”. “Falar de dor é muito chato”, justificou, convicta.Ao CORREIO, Elza explicou que o que a faz seguir em frente é “a coragem de viver” e o respeito à vida. “Todo esse paraíso que papai do céu deu, eu adoro. Se puder aproveitar o máximo, vou aproveitar”, brincou. Capa da biografia Elza (LeYa | 384 páginas | R$ 55) Me deixe cantar Dona de uma extensa e respeitada carreira que ultrapassa seis décadas, Elza tem sido celebrada por diferentes gerações por seus inovadores dois últimos discos:  Deus é Mulher (2018) e A Mulher do Fim do Mundo (2015). Com letras como “Na avenida, deixei lá/A pele preta e a minha voz”; “Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”; e “Deus é Mãe/E todas as ciências femininas”, os discos reforçam a artista como porta- voz contra o racismo e a favor do feminismo.

“Gosto muito de gritar por nós mulheres, quero ver a mulher encorajada, tomando a frente. Nunca sendo a segunda e, sim, a primeira da fila. Sempre”, defendeu a artista que, depois de se lançar como sambista, buscou quebrar o estereótipo.“A gravadora ditava o que tinha que gravar ou não. Mulata, cintura fina, perna grossa, bumbum grande ‘tem que ser sambista’ e aquilo me fazia muito mal. Por isso disse: ‘me deixe cantar até o fim’”, contou, citando a música A Mulher do Fim do Mundo.A virada se consolidou com a parceria com o músico Zé Miguel Wisnik, produtor responsável pelo marcante Do Cóccix até o Pescoço (2002). “Fui ver um show da Elza no Sesc Pompeia e ali eu fiquei completamente chapado, porque não era uma cantora como a gente imaginava. Era a mais impressionante cantora contemporânea que estava ali e não tinha um disco que dissesse isso”, lembrou Wisnik, 70. Livro foi lançado durante o Red Bull Music Festival (Fabio Piva_Red Bull Content Pool) Várias Elzas É a Elza sambista, a Elza sem rótulo musical, a mãe, mulher e filha que aparecem na biografia que é resultado de 42 horas de entrevista com Zeca. Também estão lá a Elza que cantou em circo, que ficou amiga do bandoneonista argentino Astor Piazzolla (1921-1992) e que conheceu o cantor e trompetista americano Louis Armstrong (1901- 1971) e achou que ele estava imitando sua forma rasgada de cantar.

Diante das inúmeras histórias e obstáculos, Zeca chegou a dizer que Elza “tinha tudo pra dar errado”. “É uma história improvável”, justificou. “Ela não sabe da força dela desde o início, vai aprendendo com a vida”, observou. Além da força de vontade, o poder da música foi responsável por fazer a cantora resistir, como a própria garante. “A música é a medicina da alma, cara. Não acredito que você possa viver sem música. É aquilo que te faz vivo, forte, que te faz repensar. É a música”, resume.

*A repórter viajou a São Paulo a convite da Red Bull

Trecho da biografia Elza

"São muitas histórias, isso sim. Para alguém que sempre evitou a linha reta, aplicar uma só narrativa não parece bastar. E a primeira pergunta que devemos fazer é: de quantas Elzas vamos falar? Daquela que morou refugiada na Itália, procurando um novo sentido para sua carreira e para seu amor? Daquela que achou que estava cega num culto religioso nos Estados Unidos? Daquela que perdeu dois filhos dos seis que gerou ainda adolescente? Daquela que hipnotiza, quase aos 90 anos, uma plateia – na sua maioria, com apenas uma fração da sua idade? Daquela que escondia da mãe que cantava nas boates da zona sul carioca? Daquela que encontra amor depois de sete décadas de vida num coração de vinte e poucos anos? Como você pode imaginar, são todas uma só – e aí está o desafio não apenas para quem decide contar sua vida como para quem está ávido para mergulhar nas suas histórias: toda vez que mirarmos num só ponto estaremos perdendo não apenas o foco, mas a essência de uma figura maior. Jamais plana – um poliedro".