Graça até na desgraça: molequeira e sinceridade são essências do nosso humor

Veja histórias de soteropolitanos que enfrentam os perrengues da vida sem perder o comediante dentro do seu eu. Lá ele!

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 29 de março de 2018 às 05:05

- Atualizado há um ano

. Crédito: Evandro Veiga/CORREIO

Psit Mota no Centro Histórico, reduto de figuraças como ele (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) Enquanto toma café da manhã em uma padaria, Edivaldo Rodrigues da Mota Filho, o Pisit, dispara sua metralhadora de humor. Auto intitula-se ator, mas na verdade é a hipérbole do soteropolitano comum. Sim, porque o baiano comum ri até da morte. Pisit vai além. Ri (e faz rir) da morte da avó.

“Rapaz, minha avó morreu com 93 anos. Até o fim da vida ela foi acompanhada por duas entidades brancas: Parkinson e Alzheimer. Antes de morrer ela só fazia duas coisas: tremia sem parar e contava os podres ‘duzôto’. Era uma ‘miséra’”, conta Pisit. E lá vai ele descendo uma das ladeiras do Centro Histórico, rumo ao Largo do Pelô. “Na Bahia, quem não sabe rezar bota ebó errado”, inventa pérolas, na hora.

Conversa com um e com outro. Na verdade, gente igual a ele, que enfrenta os perrengues da vida sem perder o comediante dentro do seu eu - lá ele! - tem de monte em Salvador. O resto do Brasil tenta, o carioca se esforça bastante, mas, no dia a dia, só o soteropolitano acha graça da própria desgraça. A vida pode ser implacável como for, mas o sujeito tá com um sorriso de uma orelha à outra. Só tem doido. Quase chegando no largo, Pisit se bate com seu Manoel.“Adoro velho! Quer ver? Vai subindo aí, né, meu velho?”, larga o esparro para o coroa. “Subindo a ladeira! A ladeira!”, corrige Manoel.Pedreiro, trabalhou a vida toda na construção civil, deu duro por mais de cinco décadas sem parar. Prestes a completar 80 anos, chegou à velhice mais bem humorado que Pisit, apesar da falta de dentes.

Dois casamentos nas costas, dispensou a última namorada faz pouco tempo. “Ela se livrou de mim e eu me livrei dela. Tá tudo certo”, afirmou o prático e sincero Manoel.

O produtor e diretor de teatro Fernando Guerreiro comenta o comportamento.“O baiano fala o que vem na cabeça. Ele tem uma sinceridade nata que é um elemento muito presente no humor. A amiga vira para a outra e diz: ‘você tá enorme de gorda! O que houve?’”, cita Guerreiro, que é autor de espetáculos de humor como A Bofetada, Os Cafajestes e Vixe Maria, Deus e o Diabo na Bahia.“Pois é. Terminei com a mulher. Se casamento fosse bom não precisava testemunha”, continuou Manoel. “E Deus tinha sogra, né?”, acrescentou Pisit. “É verdade. Sogra só dá produto debaixo do chão. Sogra e feijão”, emendou Manoel. “A cama da minha sogra é redonda, sabe por quê? Porque cobra só dorme enrolada”, meteu Pisit, em um diálogo de piadas entre o humorista profissional e o com formação acadêmica no botequim da esquina.

Afinal de contas, em Salvador, há humoristas nos botequins, nas esquinas, dentro dos ônibus, em todo canto. Estamos na terra em que uma nuvem negra assustadora vira piada. A tempestade em forma de ciclone tropical se aproximou de Salvador no final do ano passado e parecia anunciar o fim do mundo. No Porto da Barra, ouvia-se gargalhadas enquanto a ventania levava sombreiros para o alto. Do alto do Cine Glauber Rocha, um grupo de jovens gravou um vídeo hilário.

“É tsunami! É o fim do mundo! O céu tá black! Esse aqui é o Power Ranger amarelo e eu sou o vermelho!”. Nada de muito engraçado. Ao menos não no que foi dito. Mas, por aqui, o que vale é a forma que é dita. Na Bahia, a piada em si nem precisa ser engraçada.

“O humor baiano é muito visual, é muito corporal. A palavra entra, mas não é o elemento principal. Você não ri porque entendeu a piada, mas ri da voz, do jeito, da roupa”, afirma Guerreiro.

Daí a dificuldade de fazer com que esse texto reflita as peraltices bem humoradas de Pisit e das pessoas nas ruas. Como descrever Arioste Jorge Fér Farias? Um aposentado de quase 70 anos conhecido na Orla de Salvador pela simpatia e bom humor?

Tudo começou quando, durante uma caminhada, seu Arioste sentiu um incômodo no ombro. Para melhorar a dor, fez um movimento com a mão. Quem passava acreditou ser um cumprimento e respondeu com o mesmo sinal. Seu Arioste, a alegria da orla de Salvador (Foto: Marina Silva/CORREIO) Dali pra frente, Arioste não parou mais de acenar para as pessoas. Em alguns casos, aperta a mão e até distribui abraços. “A alegria é o substrato da alma”, resume. É por causa de gente como Arioste que Psit passa boa parte do dia circulando por aí. “Minha vida é refletir sobre o cotidiano das pessoas. A rua inspira, né?”, diz Pisit, que nasceu em Canavieiras, Sul do estado, mas adotou não só Salvador, mas sua cultura. Mora bem no bairro do Santo Antônio Além do Carmo, Centro Histórico.

Para Fernando Guerreiro, ele está no lugar certo. “O centro da cidade é um manancial de humoristas. A verdadeira Salvador está aqui. Você vai ali na Tancredo Neves e são pessoas tentando achar que estão em Nova York. Aqui no Centro você tem um tipo em cada esquina. Minha maior matéria-prima são essas pessoas”, confirma Guerreiro, que no momento dirige o espetáculo De Um Tudo, musical que discute a baianidade para além dos rótulos e propõe uma reflexão sobre a linguagem e os costumes do baiano.

Na Bahia, tem humor até no velório. “Outro dia fui em um e o cara: ‘Ô, Pisit... Ó prali, véi. Ó como tia chora. Afe, hum hum’. E, realmente. A tia chorava feio pra porra!”, lembra Pisit.“Na Bahia, a gente tem mais liberdade de brincar. É como se a gente entendesse que é preciso rir para conseguir suportar as coisas ruins”, filosofa Psit.Mas, há uma brincadeira levada a sério por aqui. O trocadilho sexual, popularmente conhecido como “puia” ou “pulha”, que por essas bandas pode ser rebatido com o famigerado “lá ele”.

A puia é o bom humor de uma mão só. Neste caso, quem cai no duplo sentido (lá ele) geralmente não gosta muito. Principalmente se não tiver um repertório para responder. “Outro dia encostei em uma escada com o cara da Coelba em cima do poste. ‘Irmão, a escada tá bamba. Tô aqui atrás de você, viu’. O cara retou: ‘Vá ficar atrás da desgraça. Lá ele. Pode sair daí!’ Eu disse: ‘Rapaz, você vai cair’. E ele: ‘Quem vai cair sou eu ou você? Vá ficar atrás do satanás!’”.

Mas, de onde vem esse humor intrínseco na gente? (Lá ele de novo). Bom, certamente ele passa de geração para geração. Mas, se não tomar cuidado, isso pode ter um fim. “O menino de condomínio, criado em uma redoma, ele nunca vai ser um bom humorista. Ele tem que conhecer os tipos nas ruas”, ensina Guerreiro.

Se bem que, no caso de Pisit, o “mal” é de família. Começou dentro de casa. Com a avó e suas entidades. “Um dia perguntei para ela: ‘Vó, o que é câncer?’ Ela disse: ‘Câncer, meu neto, é assim: você vai doente para o médico. Ele investiga, procura, investiga, procura... Quando cansa ele diz: é câncer!’.

Molequeira: das quebradas para os palcos e o YouTube Como já foi dito, o bom humor do dia a dia do soteropolitano é o mesmo que faz sucesso nos palcos. Mas, mais recentemente, as redes sociais e o YouTube também se tornaram plataformas de propagação desse bom humor. Ou seja, a Internet amplificou ainda mais a nossa molequeira.

Canais como o +1 Filmes (estrelado por atores como o próprio Pisit), o Frases de Mainha, 10ocupados e Humor Cyclonizados contabilizam milhares e milhares de inscrições, views, compartilhamentos e curtidas. Em comum, utilizam a linguagem do baianês das ruas do Centro da cidade e das quebradas.

"A gente que vem da periferia não costuma nos ver representados. Quando vemos, é de uma forma muito caricata. Na periferia a gente tem muita inspiração para Mainha e para Júnior", diz Thiago Almasy, o Júnior do Frases de Mainha. "A gente trabalha com identificação. Eu sabia que o povo do gueto ia se identificar e gostar. Seguimos nessa linha e deu certo", confirma Cristian Beell, do Humor Cyclonizados. Se acabe de rir clicando nos links abaixo.

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