Hermeticamente fechada, toda a alma será blindificada

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Publicado em 2 de setembro de 2018 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Num futuro próximo bebês nascerão com almas blindadas. Estaremos então aptos a enfrentar os petardos de dimensões infinitas [e de dimensões infinitesimais] que disparamos e que nos são disparados desde sempre, e para todo o sempre. Agora não é bem assim. Tal blindagem ainda é feita de forma tosca: blindamos nossas almas do jeito que podemos, a facão e a serrote, em tentativa desesperada de nos tornarmos imunes às intempéries e às vicissitudes.

Os resultados nem sempre são satisfatórios – mas é razoável  imaginarmos: até 2050 seremos, in totum, blindados feito bunkers que invadem a Favela do Alemão, aqui no Rio de Janeiro, ou atravessam impávidos a Faixa de Gaza, no Oriente médio.

Lamenta-se informar: já fizemos imensos progressos neste processo insano ora em curso. Há pessoas com maior capacidade de se blindarem que outras. Tais privilegiados levam vantagem no enfrentamento das questões abissais e escatológicas com as quais o mundo se debate. Pisam no pescoço da mãe, se preciso for – e se não for preciso, também – com o frescor de andorinhas no verão. O próximo lhes interessa tanto quanto gatos e cachorros atropelados e estripados no asfalto.

Este narrador, cuja alma ainda se encontra em processo doloroso de blindagem, não sabe se terá tempo, e o tempo uiva, de concluir esta obra em desordenado progresso. Mais grave: ele não sabe se quer de fato ter a alma blindada, e, assim, talvez tenha gigantescas possibilidades de se foder, ou, em palavras mais poéticas, amplas possibilidades de ser devorado por abutres blindados desde a infância. [Alea jacta est!]

Blindificar-se – o narrador quis criar este neologismo – tem a idade do homem. Não é de agora que demonstramos enorme pendor em não querer enxergar a dor do próximo. Na ponta do lápis, talvez se possa afirmar que esse processo se intensificou a partir dos anos 1980-1990.

Ele nunca esquece amigo querido que ignorava as ligações telefônicas que ele, no auge de crise existencial e financeira, lhe disparava dia sim outro também. [Outrora, lembremos, blindavam-se apenas automóveis – para impedir que as pessoas que os ocupavam fossem atingidas por balázios de portentosos calibres disparados de todos os cantos da Terra].

Blindificar-se ganhou tons superlativos no começo deste século. Hoje  esta epidemia crassa mundo afora, em céu de brigadeiro. Cada vez mais nos fechamos em cápsulas hermeticamente fechadas, dentro das quais nos protegemos das dores que não são nossas e de dissabores que não são nossos – como se a humanidade não fosse sólida massa de excrementos e dejetos. [Adolescentes se drogam com videogames, mulheres enchem as bundas de silicone podre, velhotes se entopem de comprimidos de tarja preta et al].

Blindificar-se identifica o inferno no outro – e lhe bate a porta na cara. O pai ou a mãe com o Mal de Alzheimer (ou com quaisquer dessas doenças nefastas que proliferam pelo planeta) morre vivo na memória do filho-filha-blindado bem antes de ser enterrado ou cremado.  [O tempora! O mores!]