'Impossível fechar as portas para o movimento negro', diz Russo Passapusso

Cantor é um dos contemplados pelo Natura Musical 2020, que destaca a música afro-brasileira

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  • Laura Fernades

Publicado em 27 de novembro de 2019 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Divulgação

“É impossível agora fechar as portas para o movimento negro. É impossível fechar as portas para os índios, para os trans, as mulheres. Até porque se fecharem, a gente vai derrubar”, avisou, sorridente, o cantor Russo Passapusso, 36 anos, em entrevista ao CORREIO durante o evento de lançamento do Natura Musical 2020 em São Paulo, na noite de segunda-feira (25). O vocalista do BaianaSystem é um dos 41 nomes selecionados pelo edital que, pela primeira vez, contempla em sua maioria artistas, bandas e coletivos dedicados à cultura afro-brasileira. Além de Russo, que vai lançar um disco inédito com a dupla Antônio Carlos e Jocafi, o programa inclui baianos como Riachão, Mateus Aleluia, Jadsa Castro, Àttøøxxá e o coletivo Afrobapho. No nacional, o edital selecionou nomes representativos como Elza Soares, que vai lançar o DVD ‘O Planeta Fome de Elza Soares’, e Emicida, que vai circular com aturnê do álbum ‘AmarElo’. Além deles, vale destacar a associação de mulheres Ilú Obá De Min que há 15 anos celebra a cultura afro-brasileira em São Paulo e agora comemora com álbum inédito, show e curta-metragem. Letrux, Russo Passapusso, Elza Soares, Riachão e Emicida estão entre os selecionados (Fotos: Divulgação) “A gente não pode tirar a música brasileira pelo edital da Natura. Quando a gente fala de afrobrasilidade, a gente fala de todos os tempos. Mas dou o crédito a alguns projetos, algumas marcas e iniciativas privadas que têm esse tipo de curadoria”, elogia Russo, sobre a representatividade encontrada no Natura Musical 2020, cuja curadoria contou com 22 profissionais.Força baiana Dos 2.647 projetos inscritos, 41 foram selecionados para receber R$ 5,4 milhões em patrocínio e uma pequena amostra foi apresentada no evento de lançamento. O show dinâmico começou com o rapper paulista Edgard e teve a Bahia em destaque: Russo foi o grande anfitrião, que se apresentou com Antônio Carlos e Jocafi, cantou com a conterrânea Jadsa e conduziu o grupo paulista Ilú Obá De Min. “Nessa última década, uma nova cena vem aparecendo com mais força na Bahia e ela resgata tradições e valores da música afro-brasileira. A gente acredita que essa efervescência representa a música brasileira como um todo, por isso a gente quis fazer essa representação na festa de hoje”, destacou a gerente de marketing institucional da Natura, Fernanda Paiva, no evento de segunda. Uma das baianas selecionadas, a cantora Jadsa se apresentou no evento de lançamento do Natura Musical 2020 (Foto: Divulgação) Além dos baianos que estavam presentes no lançamento, também foi destacada a força de outros projetos como o que o Àttøøxxá vai apresentar pelo edital: o Ta Batenu – Culto Afrofuturista. Inspirado nos famosos ensaios do grupo em Salvador, o projeto prevê shows, performances e uma feira de produtos com foco na estética afrofuturista. “Queria parabenizar a Bahia. Não quero gerar ciúme em ninguém, mas eu achei a Bahia melhor que o nacional. Me emocionou de ver como ela está no topo da força, da criatividade, da vontade e da competência”, elogiou um dos curadores do Natura Musical, o produtor musical Xuxa Levy, 46, que assinou o disco de Emicida ‘Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa’ (2015).“Queria parabenizar a Bahia. Não quero gerar ciúme em ninguém, mas eu achei a Bahia melhor que o nacional. Me emocionou de ver como ela está no topo da força, da criatividade, da vontade e da competência” - Xuxa Levy, produtor musical e um dos curadores do Natura Musical“Não tem nada mais maravilhoso do que ver esse movimento negro e a Bahia trazendo uma nova cara”, elogiou Xuxa. Emocionado ao contar que foram cerca de 60% de artistas afrodescendentes contemplados esse ano, o produtor disse que o resultado “é uma afirmação do sangue brasileiro” e “levou a equipe às lágrimas”. “Sei que sou um branco privilegiado, mas sei o perrengue que é impor uma cultura em um país como o nosso, ainda mais na situação que a gente vive hoje”, ressaltou.

Grito Quando se fala em música baiana e cultura negra, Russo destacou que é igualmente importante falar da música Nordestina como um todo, assim como da música afro-ameríndia. Reconhecer a importância de ser um representante também é fundamental, afirmou o pianista recifense Amaro Freitas, único artista de Pernambuco contemplado pelo edital esse ano. “Tem gente que vai olhar para um pianista negro, que vem do Nordeste, da periferia, se sustentando da sua obra, vai olhar para isso e dizer: ‘É possível’”, citou Amaro, 28 anos. À frente do Amaro Freitas Trio, o artista vai lançar seu terceiro disco da carreira pelo edital, com temas que refletem a ancestralidade. “Meu papel aqui é fazer música, tentar conectar as pessoas, tentar elevar o espírito humano através da música”, acredita Amaro, que desconstrói a música afro-brasileira nos discos Sangue Negro (2016) e Rasif (2018), ao misturar frevo, maracatu, baião, e coco. “A gente tem essa missão de conectar as pessoas. A gente tem que pensar que todos juntos, somos mais”, completou. O atual momento, com tantos artistas afro-brasileiros em ascendência, na opinião de Amaro, pede o olhar atento para a ancestralidade e a compreensão de sua importância, mas sempre mostrando uma leitura contemporânea dela. Russo concorda e acredita que a ressignificação da matriz vem acompanhada de um recado poderoso. “Um grito contra qualquer coisa que queira calar nosso grito. Contra o racismo, contra todo esse processo de preconceito, tudo o que a gente vê hoje”, defendeu. Antônio Carlos e Jocafi lançam disco inédito com Russo Passapusso (Foto: Divulgação) Russo curava as dores ouvindo Antônio Carlos e Jocafi O cantor Russo Passapusso trabalhava em uma loja de discos quando descobriu o trabalho de Antônio Carlos e Jocafi. Acontecia alguma coisa muito triste em sua vida? Ele encontrava uma música na discografia dos dois baianos para traduzir seu sentimento. “Qualquer coisa que acontecia, eu ouvia ‘Cada um sabe bem onde dói e onde o sapato lhe aperta’. Ou ouvia ‘Se Deus desse asa pra cobra eu tirava o veneno’ e ‘Você abusou, tirou partido de mim abusou...’. Aí eu falava: ‘Nossa, isso foi feito pra mim!’”, gargalha Russo, ao lembrar da juventude no Pelourinho. No dia em que a dupla deu entrevista para um programa de televisão, Russo não hesitou e foi com seu disquinho debaixo do braço pedir um autógrafo.“Naquele momento, eu esqueci que era Russo Passapusso. Voltei a ser aquele menino que estava trabalhando na loja”, lembra, sobre o encontro há dois anos.Daquele dia em diante, os três não se desgrudaram mais. Além de se falarem todos os dias, passaram a compor juntos e participar de shows juntos. A dupla, que hoje tem 75 anos e 50 de carreira, assina algumas músicas que estão no último disco do BaianaSytem, como a elogiada Água. “Estou aprendendo muito com eles, a não só fazer a música, mas entender que a música faz a gente”, agradece Russo, sobre os cantores com quem tem mais de 30 composições feitas nesses dois anos. Uma parte delas estará no álbum inédito Alto da Maravilha, que será lançado pela Natura em 2020. O disco, que teve sua primeira reunião de planejamento nesta terça-feira (26), vai reunir músicas inéditas, composições feitas por Antônio Carlos e Jocafi com o cantor e produtor paulista Curumim, além de músicas assinadas só pela dupla ou só por Russo. Esse projeto, na cabeça de Russo, já aconteceu desde a primeira vez que a gente se encontrou. É uma coisa muito forte pra gente. Pensa como você realizar um sonho: Russo queria fazer um disco com a gente, a gente queria fazer um disco com Russo. Hoje, com a Natura, a gente tem a oportunidade de fazer o disco que a gente quer com o cara que a gente ama. Nós temos Russo como um filho”, elogiou Antônio Carlos, 75 anos.

*A repórter viajou para São Paulo a convite da Natura