‘Intolerância é a ilusão de estar de fora’, afirma Valter Hugo Mãe

Escritor português, que participa da abertura da Flica, analisa o contexto político atual e fala sobre relação com artistas baianos

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  • Naiana Ribeiro

Publicado em 10 de outubro de 2018 às 06:12

- Atualizado há um ano

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. por Divulgação

Considerado um dos autores mais importantes da literatura portuguesa contemporânea, Valter Hugo Mãe, 47anos, chegou nesta terça-feira (9) em solo baiano para a abertura da Festa Literária de Cachoeira (Flica). O escritor vai bater um papo junto com o baiano Aleilton Fonseca, nesta quinta-feira (11), às 15h, na mesa Escritores em um Mundo Intolerante e Deserto de Compaixão.

Acompanhe a cobertura completa da Flica 2018

Antes de ir para Cachoeira, ele estará nesta quarta-feira, às 19h, no Quadrilátero da Biblioteca Central dos Barris, em Salvador, em uma espécie de prévia da festa literária. Valter Hugo Mãe é autor de obras vigorosas como A Máquina de Fazer Espanhóis (2010), O Filho de Mil Homens (2011) e Homens Imprudentemente Poéticos (2016). Valter Hugo Mãe tem obras traduzidas em vários países e já conquistou prêmios relevantes no seu país onde, além da prosa e da poesia, também é pintor. Tornou-se conhecido no Brasil a partir de 2011, quando encantou o público da Flip - Festa Literária Internacional de Paraty, no Rio (Foto: Divulgação) Nesta conversa com o CORREIO, Valter Hugo analisa o contexto social e político atual e conta como artistas baianos foram importantes no seu processo de autoconhecimento. Otimista, destaca que sua obra estuda a redenção humana, além de falar sobre a participação na oitava edição da Flica.

Quais as expectativas para a Flica? E para o evento que será nesta quarta-feira (10), em Salvador? Sempre espero do encontro com os leitores uma certa festa. Quando encontramos autores e leitores temos entre nós uma espécie de intimidade que os livros inventam. Ler implica com nosso tempo e nosso pensamento mais profundo, assim, entre quem escreve e quem lê pode não existir um encontro nunca mas existe uma relação que pode ser incrivelmente profunda. Eu chego sempre com essa ideia na cabeça. Como se fosse olhar nos olhos de um familiar que apenas agora descobri. Espero que isso se traduza numa alegria. Uma festa.

O que podemos esperar da mesa que você fará parte na Flica? Se conseguirmos que as pessoas presentes aceitem discordar de boa fé já teremos justificado o evento. Julgo ser importante criar universos de discussão tolerante onde regressemos impreterivelmente à esperança e à integração de todos. (Divulgação) Sobre o que você vai falar? Meus livros são modos de estudar a redenção humana. Quero muito ponderar acerca da possibilidade de deixar o mundo melhor. Oh, meu deus, devo estar falhando demasiado porque tudo em redor piora a passos largos. Falarei informalmente dessa posição de crença permanente. Uma posição positiva, muito desencantada também, mas obstinadamente positiva.

Sua mesa abordará as intolerâncias. Você acha que estamos em um mundo cada vez mais intolerante? Nem creio que seja algo sujeito a opinião. Estamos num mundo de radicalizados, onde o cidadão comum, que virou emissor através das redes sociais, revela uma despreparação grave para discernir acerca do que há a decidir. Curiosamente, há uns anos a divulgação das ideias, desde logo políticas, dependia de debates e de uma criatividade genérica envolvida numa campanha. Hoje, ao contrário, parece depender da instalação do medo, a propagação de uma intimidação que leva uns e outros a desejar mão pesada, julgando equivocamente que a mão nunca descerá sobre si. A intolerância é a ilusão de estar de fora. A pessoa consciente sabe que não está fora de nada. O que decide cai sobre si mesmo. Cai sobre os seus. Implica com a sua vida.

As redes sociais contribuem com esse cenário? Sim. Esse palco é um mato de feras. Fica cheio daqueles malucos algo folclóricos que por vezes nas praças gritam palavras de ordem, anunciando a gravidez bastarda da rainha da Inglaterra ou a invasão dos portos pelos últimos homens de Napoleão. Enfim. Nas redes sociais ficaram potenciados os ódios porque a distância funciona como armadura que motiva os piores a tornarem-se guerreiros. É uma pena. As redes são concretamente uma maravilha, quem as deturpa, naturalmente, somos nós. Os clássicos seres humanos.

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Pensando nisso, qual a importância da literatura no mundo atual? Como dizia acima, o livro acontece na intimidade do leitor. Passa pelo leitor profundamente e só funciona enquanto pensamento que se põe no pensamento do leitor. Assim, pouca informação que recebemos leva tanto tempo de companhia connosco, pouca coisa que vemos, escutamos ou lemos tem a capacidade de se mesclar tão longa e intensamente com a consciência de alguém quanto um livro. Nesse aspecto, sim, ainda que se discuta a existência de um número diminuto de leitores, esse grupo é uma elite que acede a uma dimensão riquíssima e poderosíssima da vida. 

Você esteve aqui em 2016. Veio mais vezes para cá? Ainda não voltei a Salvador, faço-o agora maravilhado. Demorei um bocado a conhecer essa cidade que todos me diziam ser a mais exuberante do Brasil. Não sei se é a mais exuberante do Brasil porque a concorrência é forte, mas que é inesquecível, dúvida nenhuma. Sua mesclagem, seu radical africano, o sincretismo religioso, a comida, a música toda, casas e praia, Jorge Amadíssimo, Ubaldo Ribeiro e Antônio Torres, Caetano e Bethânia, Caymmi, Gil e João Gilberto, Daniela e Tom Zé. Enfim. Essa é uma terra de deuses. Não tem semelhante, não tem muita explicação. 'A felicidade não é uma coisa inalcançável', afirmou Valter Hugo Mãe, em 2016, no Fronteiras Braskem do Pensamento (Foto: Vaner Casaes / Ag: BAPRESS) Quais foram as tuas impressões da capital baiana? Vou sempre lembrar da agitação no Pelourinho, dos batuques nas noites de final de semana, as pessoas dançando trancando as ruas, o aniversário de uma moça extremamente grávida com um som altíssimo num carro, e a chuva súbita. Vou sempre lembrar da missa de terça-feira na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos.

Em 2016, você disse que Caetano "significa o melhor do Brasil. Aquilo que nenhuma outra cultura do mundo soube fazer". Também fala sempre sobre Bethânia e Gil, que, assim como ele, são baianos. Como conheceu o trabalho deles? Qual sua relação com artistas baianos? Eu soube deles antes de saber de mim. Tocavam no gira-discos de nossa casa, e na televisão, quando eu nasci. Fui sabendo deles como fui sabendo o que era cadeira e pássaro e menina ou amanhã. Os cantores brasileiros eram uma espécie de visita de longe, a chegaram do meio de um encanto profundo, com seus sotaques diferentes. Eram embelezados por suas tropicais delicadezas. Traziam verão no som. Nos anos 1970, em certo sentido, Portugal só tinha inverno. Verão era música e Gabriela.

Como é sua relação hoje com o Brasil? Cada vez mais forte e preocupada. Sou um cidadão abrasileirado. Enfim. Não tenho identidade, como você imagina, chego sempre de visita, mas abrasileiro muito e cada vez mais a minha vida. Um dia, quero tanto, terei condições de passar uns meses livres no Brasil. Só engordando com feijão e arroz, acompanhando o Luciano Huck, como fazem os cidadãos mais normais, fofocando acerca da vida amorosa das atrizes e cheio de água de coco. Eu adoro a experiência das coisas simples do Brasil. As coisas da paz. Faço votos para que o país esteja em paz, porque ele inteiro é uma inclinação para a alegria e para o prazer.

Coincidentemente, a Flica acontece dias após o primeiro turno de eleições. Qual sua análise sobre o cenário que vive o Brasil? Há alguma semelhança com Portugal? Semelhança nenhuma. Em Portugal estamos vivendo uma regeneração fulgurante, e gloriosa, depois de um governo submisso e castrador. Estamos com um governo de acordo entre três partidos de esquerda e esse compromisso tem sido um controlo admirável que produz um resultado comedido e muito favorável ao cidadão comum. No Brasil vejo o caminho contrário. A esquerda e a direita, hoje, são chavões grandemente retóricos. É muito importante a política não ser prepotente.

Você lançou ano passado o livro Homens Imprudentemente Poéticos, com tonalidades trágicas para retratar a pobreza, a vida, a morte e as relações entre os persoangens. Apesar de coisas universais, por que visitou locações fora de Portugal? Pretende escrever obras que se passam em outros lugares? Depois de anos pensando a partir das referências portuguesas foi importante para mim sair. Criar uma deslocação que me leve ao risco mas também à oportunidade de entender o mundo através de outras ideias. Como se criasse uma hipótese de ser um novo escritor. É sempre algo profundamente limitado, mas o périplo por outras culturas favorece o trabalho distinto. Quero muito isso. Mudar. 

Teus personagens têm grande humanismo e compaixão. É a mensagem ou desejo para uma melhor convivência entre as pessoas, com suas diferenças, na sociedade atual? Só acredito nessa validação para a existência: estarmos aqui pelos outros, integrarmos os outros, aceitarmos suas diferenças. Meu único problema é com quem exclui. Quem considera ser dotado de uma superioridade que propende para a eliminação do outro. Não quero eliminar ninguém. Quero que todos se apaziguem. Sei, sim, que hoje acreditar e defender isso se torna, lementavelmente, uma extravagância.

Já fazem 22 anos do seu primeiro livro, Silencioso Corpo de Fuga, uma obra de poesia. E você lançou livro de poemas Publicação da Mortalidade (ainda não disponível no Brasil) esse ano. Quais as principais diferenças dessas duas obras? Sentiu falta de sua criação poética? Senti, sim. Claro que os romances iam contendo toda a poesia de que fui capaz, mas faltava o verso declarado, fechado. Julgo que o poeta de há mais de vinte anos era todo ocupado com as grandes questões da vida, as perguntas intemporais, sem espaço para a realidade, apenas uma função ideal, tremendista. Hoje, talvez rode em torno das mesmas questões mas atento à realidade, como se me interessasse encontrar resposta fora do reduto ideal. Qualquer resposta que nos sirva precisa de ser equação da nossa vida. De outro modo é apenas uma clausura no pensamento. Serve para poema, não serve para o poeta. Quero muito versos que atinjam o poeta. (Foto: Reprodução) Algum plano especial ou projeto em desenvolvimento para o final do ano ou para 2019? Em dezembro fico trancado a escrever meu novo romance. Estou ansioso como se minha noiva me esperasse por três meses no quarto. Depois de uma série algo violenta de viagens, ficarei o inverno a escrever algo que amadurece há quatro anos na minha cabeça. Será altura de pegar em todas as páginas escritas, todas as anotações e memórias, e avançar. Estou muito feliz com o livro que estou a preparar. Espero que funcione. (Fábio Rocha/TV Globo/Divulgação) Serviço O quê: Festa Literária Internacional de Cachoeira – Flica 2018 Quando: De quinta (11) a domingo (14) Onde: Cachoeira  Quanto: Gratuito  Informações: www.flica.com.br