‘Irracional’, diz psiquiatra e consultor da Globo sobre falta de papel higiênico

Em entrevista, Daniel de Barros fala sobre emoções, pandemia e novo livro

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  • Laura Fernades

Publicado em 23 de março de 2020 às 06:00

- Atualizado há um ano

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O esgotamento do papel higiênico nos mercados, por causa da pandemia do coronavírus, mostra como a influência das emoções é complexa. “A gente acaba tomando decisões irracionais como a gente viu [com o papel higiênico]. Uma coisa absolutamente sem sentido, um comportamento irracional, motivado por essa ansiedade, por esse pânico”, observa o psiquiatra Daniel Martins de Barros, 43 anos.

Então quer dizer que pânico e medo são sentimentos ruins que devem ser evitados? Depende. É isso o que defende Daniel em seu novo livro: O Lado Bom do Lado Ruim (Sextante | 160 páginas | R$ 39,90). Nenhum desequilíbrio emocional é bom, reforça o autor que é médico do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, mas é importante tirar boas lições dos sentimentos negativos.

Frases como “não chore”, “não tenha medo” e “não fique nervoso” – comuns no dia a dia, principalmente no atual cenário mundial – mostram como essas emoções são encaradas apenas por seu aspecto negativo. Porém, todas elas têm um propósito. “Quem não está com medo, não toma as medidas de proteção importantes até para a coletividade”, exemplifica Daniel. Confira a entrevista completa.

Seu livro ganha lançamento em meio à pandemia do coronavírus e ao isolamento social imposto às pessoas do mundo todo. Qual seria o “lado bom desse lado ruim” que estamos enfrentando? É difícil falar que tem um lado bom em uma tragédia, que tem um lado bom em algo tão ruim como o que estamos atravessando. Mas a ideia do livro não é essa. É falar que as emoções têm um lado bom. Então, tudo o que a gente está vivendo de ruim, toda essa tristeza, todo esse medo, toda essa angústia, são emoções que têm um propósito. Elas têm uma utilidade e a gente tem que aprender a usar essas emoções a nosso favor.

Ficar em quarentena traz uma série de lutos e muita gente ignora essa dor, acha que é exagero e prefere fingir que não existe. Ouvimos até “não tenha medo”, “não chore”. Como usar essa tristeza e esse medo a nosso favor? No capítulo sobre a tristeza, eu digo que o luto é um “amargo remédio”, porque é muito duro você admitir “eu perdi isso e isso não volta mais”. Só que ele é um remédio. Porque quando você consegue dizer “olha, não volta mais. Eu gostava muito, mas acabou”, você consegue seguir em frente em busca de alguma outra coisa. Enquanto você não se conforma com uma perda, você fica parado no tempo. Então isso é muito ruim para o nosso bem-estar. E nem precisa dizer como o medo nos protege.Nesse contexto de coronavírus, quem não está com medo, não toma as medidas de proteção importantes até para a coletividade. Então o medo tem esse fator de proteção também.O excesso de felicidade postada nas redes sociais contribui com a negação da dor? O excesso de felicidade nas redes sociais é mais sintoma do que causa. A gente tem essa vontade de negar a dor, de calar as emoções negativas, de fingir que a gente está feliz o tempo todo, ou acreditar que a gente está feliz o tempo todo, e isso fica potencializado nas redes sociais. Elas colocam uma lente de aumento em cima disso, mas não sei se são causa. Lógico que como está sob lente de aumento, parece ainda maior – e talvez isso até agrave o fenômeno – mas não surge daí. Surge de um desejo nosso de não sofrer, de não sentir essa dor.

Por que há tanta resistência com as emoções negativas? Porque elas são ruins, são desagradáveis. As emoções negativas sinalizam pra gente coisas que a gente não queria, coisas que a gente tem que fugir, evitar, recuperar. Enfim, elas são desagradáveis, por isso a gente resiste a elas. E o livro não faz uma apologia de inverter isso, de dizer que elas são agradáveis. Não, elas são ruins de fato, mas elas têm um lado bom, que não é agradável, mas é um lado útil, que pode nos ajudar a entender melhor a nossa própria vida.

Em seu livro, você busca ajudar as pessoas a ficarem mais atentas em relação às emoções negativas, certo? Mas existem pessoas que, por outro lado, se alimentam da dor. Fazem dela a razão de vida, onde o sofrimento impera. Isso é saudável? Não, isso não é saudável. Existe, de fato, gente que não vive sem um probleminha, que alimenta as próprias emoções negativas. Isso é uma dinâmica de vida, de personalidade, que é bastante prejudicial. É a pessoa que parece que não pode ficar feliz, porque se ela ficar feliz a vida dela perde o sentido. Está sempre buscando um problema. E obviamente isso não é ruim, porque a gente precisa de emoções positivas tanto quanto das emoções negativas.Esse que é o ponto: uma vida completa não é uma vida sempre feliz. É uma vida com emoções de todas as cores. Mas também não é uma vida sempre triste.Como manter o equilíbrio? Para manter o equilíbrio, a primeira coisa é a gente conhecer o que está pondo na balança. Como vai equilibrar uma balança em que a gente só presta atenção em um dos pratos? Então, se a gente para de fugir das emoções negativas e presta a atenção nelas, a gente começa a entender que existem dois lados: as emoções boas e as ruins. E passa a tentar equilibrar um pouco mais essa balança.Não é alimentar as emoções negativas, mas também não adianta querer abafá-las, porque daqui a pouco elas gritam em um volume que vão se fazer ouvir. O equilíbrio começa com essa autopercepção.O que te motivou a compartilhar, em livro, esse conhecimento a respeito das emoções? A motivação para esse livro foi justamente esse movimento que eu via de uma euforia inesgotável, de a gente estar o tempo todo feliz, o tempo todo esfuziante, o tempo todo alegre, e uma negação muito grande da tristeza. As pessoas me procuravam, às vezes, achando que estavam com algum problema, quando estavam só tristes.

Lógico que às vezes a pessoa acha que só está triste e está deprimida, mas o fato é que as emoções negativas têm muito pouco apelo. Elas ficaram estigmatizadas e acho que foi uma tentativa de justamente equilibrar a balança, como a gente estava falando: “Olha, isso aqui existe, não dá pra gente fugir e isso aqui é importante”.

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Em um trecho do livro, você diz “a influência das emoções sobre nosso raciocínio é tão complexa que nós não somos capazes sequer de saber (...) como nos comportamos ao ser tomados por uma emoção”. Diante do que vivemos hoje, com as pessoas tomadas por emoções relacionadas ao coronavírus, o que observa? A situação de exceção que a gente vive agora, com essa pandemia, mexeu muito com nossas emoções e elas trazem exemplos clássicos de como a gente pode se comportar de maneira irracional quando somos tomados pelas emoções. A gente não deve negá-las, mas não deve deixá-las também serem as únicas a falar. Nesse trecho do livro, eu digo que não adianta a gente falar que a decisão tem que ser 100% racional, porque ela é também emocional.

Mas quando a emoção é muito intensa, a gente acaba pecando pelo outro lado, tomando decisões irracionais como a gente viu, por exemplo, o esgotamento do papel higiênico nos mercados. Uma coisa absolutamente sem sentido, um comportamento absolutamente irracional, motivado por essa ansiedade, motivado por esse pânico. Então, é isso que a gente tem que ter cuidado.Tem que ter o medo pra se proteger, sem que isso vire um pânico que nos deixe cegos ou irracionais.Isso pode ser, sim, uma ameaça à empatia. “Eu em primeiro lugar”, “primeiro deixa eu me salvar e os outros ficam pra depois”, mas também dá espaço para muita solidariedade. Acho que a gente tem que estimular isso nas pessoas.

Na primeira página do livro, você entrega o final ao dizer que “ninguém consegue se colocar acima das emoções”. Como, então, lidar com elas e manter a sanidade mental em tempos tão difíceis? Como a gente vai buscar um equilíbrio, já que não consegue se colocar acima das emoções? O que a gente tenta fazer é reconhecê-las, dar o espaço que elas têm e lado a lado com a razão. Na tentativa de se colocar acima das emoções e negá-las, sejam elas boas ou ruins, tentando ser 100% racional, a gente acaba tomando decisões que não são as melhores para nós e nem para os outros. Mas também tentamos abafá-las o tempo todo, às vezes estamos agindo movidos pela emoção, achando que estamos fazendo alguma coisa racional.

Então, mais uma vez a gente consegue o equilíbrio quando dá espaço para esses dois aspectos da nossa vida. Se a gente dá todo o protagonismo para a razão, a emoção fica abafada e uma hora acaba berrando, ou até influenciando sem a gente ter controle. Se deixamos a emoção tomar o controle total, podemos agir de maneira irracional. Nenhum dos dois é protagonista, mas a gente precisa saber que têm espaço no palco das nossas emoções.

-Quem é Daniel Martins de Barros é psiquiatra, médico do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas e professor do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Consultor do programa Bem Estar, da Globo/TV Bahia, é autor de livros como Viagem por Dentro do Cérebro (Panda Books), indicado ao prêmio Jabuti 2014.