Juíza admite 'erro grave', mas diz que não obteve vantagem em caso do 'morto-vivo'

Advogado foi retirado de processo com certidão de óbito de xará

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 29 de novembro de 2018 às 03:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Mauro Akiin Nassor/Arquivo CORREIO

A juíza Ana Gabriela Duarte Trindade, que excluiu a “punibilidade” do advogado João Lopes de Oliveira - processado por fraude de licitação - ao declará-lo morto, admitiu pessoalmente o que seria um “erro grave induzido por um sistema eletrônico” do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA). Mas ela garantiu não ter obtido qualquer vantagem ao proferir sentença.

De julho deste ano, a sentença é baseada na Certidão de Óbito de um homônimo de João Lopes de Oliveira. Apesar do nome do réu e de sua mãe serem iguais, a juíza diz que o cartório da 2ª Vara Criminal de Simões Filho, da onde é titular, não checou as outras informações que constam no documento. O nome do pai, a naturalidade, a idade, o o RG e CPF são diferentes.

Além disso, o morto verdadeiro faleceu em 2011, dois anos antes de o processo ser iniciado contra João Lopes de Oliveira e mais duas pessoas, incluindo um filho dele, em março de 2013. Uma semana depois de ser questionada pelo CORREIO de que a sentença é baseada no atestado de um homônimo e que o João Lopes de Oliveira processado na verdade está vivo, a juíza convocou a reportagem para dar explicações sobre o fato.

Em uma entrevista na Associação dos Magistrados da Bahia (Amab), a portas fechadas, sem autorizar ser fotografada ou gravada, a juíza recebeu a reportagem ao lado da servidora pública Diana Deyse Cardoso de Santana, que é formada em Direito e Letras, funcionária do Tribunal de Justiça da Bahia desde 2008. Diana assinou eletronicamente e juntou a certidão ao processo. Ambas reconheceram o que seria um “erro grave”, mas insistiram que a Certidão de Óbito foi extraída do sistema SmartJud, do Tribunal.

A juíza mostrou a lista dos “prováveis óbitos” que o sistema puxou à época da semana de sentenças, uma espécie de mutirão para reduzir o número de processos parados. Constavam 40 prováveis óbitos na lista à espera de avaliação para exclusão de punibilidade. O nome de João Lopes de Oliveira aparece logo no topo. Antes mesmo de acessar a certidão, já é possível ver que a data do óbito é de 2011.“Você tá vendo que o sistema me mostra o nome da mãe também? Nós erramos porque o cartório não avaliou os demais dados, mas o resultado da busca nos induz ao erro”, disse a juíza.Ana Gabriela apontou outros dois detalhes que teriam contribuído para que a sentença fosse proferida. Primeiro o grande volume de processos, o que também induziria ao erro. Segundo, o fato de o Ministério Público da Bahia (MP-BA) não ter contestado a decisão. A juíza confirmou que notificou o MP-BA. Este, diz a lei, tinha cinco dias para se manifestar.

Procurado, o MP-BA confirmou que foi “efetivamente intimado”, não tendo recorrido porque em momento nenhum suspeitou que a Certidão de Óbito não dizia respeito ao réu.“No momento em que o Cartório, que tem fé pública, traz aos autos uma certidão, tem-se a presunção de veracidade da mesma e a pertinência da mesma ao processo”, respondeu a promotora Alice Ataíde, que ofereceu denúncia contra João Lopes de Oliveira em 2013 por fraude em licitações. Juíza recebeu reportagem para entrevista a portas fechadas, sem ser fotografada ou filmada (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) Gráficos Apesar do “erro grave”, juíza e servidora pública disseram que fazem um trabalho diferenciado na 2ª Vara Criminal de Simões Filho. Apresentando gráficos no próprio SmartJud, Ana Gabriela afirmou que, desde que assumiu a Vara, no ano passado, reduziu o número de processos parados há mais de 90 dias de 45% para 5,7%. “Modéstia à parte, arregaçamos as mangas, eu e meu time, e conseguimos reduzir muito o número de processos”, declarou.

Como chegou à Vara em 2017, a juíza afirmou que não acompanhou desde o início o processo envolvendo João Lopes de Oliveira, que se arrasta desde 2013. Ana Gabriela afirma, inclusive, que é a responsável por colocar o processo para andar. “O processo parou por algum motivo. Ninguém impulsionou mais o processo. Nós que colocamos para andar”, garantiu. Advogado dado como morto foi encontrado vivo pelo CORREIO em Alagoinhas (Foto: Mauro Akiin Nassor/Arquivo CORREIO) Emenda Além do erro de dar um réu como morto, a juíza pode ter cometido um segundo erro para tentar consertar o primeiro. No último dia 22, dia seguinte ao que foi questionada pelo CORREIO, a juíza proferiu uma nova sentença em que reverte a extinção de punibilidade do réu e coloca o nome de João Lopes de Oliveira novamente no processo. 

Acontece que, conforme reportagem do CORREIO publicada nesta quarta-feira (28), especialistas em Direito afirmam que, após transitada em julgado, ou seja, quando não há mais recursos, uma sentença não pode ser reformada contra o réu. A juíza, porém, contestou que a decisão estava transitada em julgado. “Cientificamos o Ministério Público, mas não cientificamos as partes. Isso impede o transito em julgado”, disse a juíza, considerando que a segunda sentença é válida.O Ministério Público concorda. “As demais partes do processo não foram intimadas, o que impediu o trânsito em julgado”, destacou a promotora Alice Ataíde, apesar de não ter sido intimada ainda da segunda sentença. 

A nova decisão, na verdade, se tornou um objeto de discussão de correntes jurídicas. Juristas ouvidos pelo CORREIO contestam o argumento da juíza e do MP. “Se a decisão dela foi publicada no Diário Oficial, se consta no processo eletrônico, não tem mais jeito”, disse um advogado criminalista que preferiu não ter o nome divulgado.

Para João Paulo Martinelli, mestre e doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP) e sócio do escritório Urbano Vitalino Advogados,  esse é um caso inédito. Ele diz que, em vez de dar uma nova sentença, a juíza deveria notificar o Ministério Público sobre o erro. “Já houve casos em que a certidão de óbito era falsa e o próprio juiz que extinguiu a punibilidade teve poder de rever sua decisão, considerando que a certidão falsa não permite o trânsito em julgado da decisão”, explicou o advogado.“Nesse caso específico, não houve falsidade, mas sim erro da juíza. Como ela não é parte do processo, somente o MP poderia recorrer da decisão para o tribunal reverter a decisão. A juíza agiu como interessada no processo, o que não é permitido pela Constituição Federal (princípio da imparcialidade do juiz). A juíza deveria ter intimado o MP para apresentar recurso”, conclui Martinelli.Tocar em frente     De qualquer forma, a juíza garante que vai tocar o processo em frente. Ela diz, inclusive, que os defensores do advogado 'morto-vivo' sabiam da decisão de excluir a punibilidade de João Lopes por morte: “Eles sabiam e não alegaram”. Ana Gabriela afirmou que uma audiência chegou a ser marcada para outubro, mas os réus (e nem seus advogados) não compareceram.

Antes de ser dado como morto, João Lopes Oliveira respondia ao processo junto com o filho João Lopes Oliveira Júnior e o empresário Júlio César Souza da Cruz. “Ele sabiam da decisão de extinção de punibilidade. Até porque teve essa audiência marcada e eles não compareceram”, lembra a juíza.

O novo advogado de João Lopes de Oliveira disse que não sabe se o cliente sabia que tinha sido dado como morto. “Eu não era advogado dele na época”, afirmou Hítalo Rocha, reafirmando que vai tentar demonstrar que a primeira decisão da juíza não pode ser revertida e que o atestado de óbito não surgiu de seu cliente.“A ideia não é atribuir culpa a alguém. Mas, simplesmente demonstrar um erro unilateral e que ele ocorreu por parte do próprio Judiciário e meu cliente em momento algum protocolou algo ou fez inserção de algum documento”, disse Hítalo Rocha.

Magistrada respondeu a processos entre 2010 e 2013 A juíza Ana Gabriela Duarte Trindade e o advogado João Lopes de Oliveira têm muito em comum, além de ela ter extinguido a punibilidade dele por morte. Em 2013, a juíza foi designada para assumir a Jurisdição Eleitoral da 79ª Zona, em Nova Soure. Além de ser natural de Nova Soure, João Lopes Oliveira respondeu processo por “frustrar competitividade” de concurso público lá, em 2009. 

Ele respondeu processo em Cipó, em 2009, onde Ana Gabriela foi juíza. Os processos foram arquivados, mas não há o nome do juiz. Perguntada, a juíza disse não conhecer João Lopes Oliveira. “Não o conheço”, disse. “Não lembro se acompanhei algum outro processo dele”, completou.    A juíza respondeu a duas sindicâncias e um processo administrativo disciplinar e foi condenada por peculato, mas o crime prescreveu. A magistrada chorou ao ser questionada sobre eles.

Uma denúncia de 2010, em Cipó, apontou que Ana Gabriela expediu alvará judicial para a liberação de dinheiro para a tia do seu marido. Em vez da tia, que mora em Recife, o endereço declarado era da juíza. O processo prescreveu e foi arquivado.

Também em 2010, a juíza respondeu a sindicância em Mata de São João por carga de processos, arquivada. O TJ-BA disse que os processos “são antigos, datam de 2012, tiveram tramitação normal e já foram arquivados”.

'Esse é um caso inédito', diz advogado especialista em Direito Processual e Penal O CORREIO conversou com o advogado João Paulo Martinelli, sócio do escritório Urbano Vitalino Advogados, sobre o caso do 'morto-vivo'. O jurista possui Extensão Universitária em Direito Processual Penal pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), é especialista em Direito Penal pela Universidade de Salamanca, mestre e doutor em Direito Penal pela USP e pós-doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra.A juíza poderia extinguir a punibilidade do réu por falecimento sem intimar as partes e o Ministério Público? Quando há uma causa de extinção da punibilidade, não há necessidade de intimar as partes, pois o juiz pode agir de ofício (sem ser provocado). A morte do agente é uma questão objetiva, que independe de valoração do juiz, portanto, não há necessidade de parecer do MP. Acontece que, nesse caso, por infelicidade da juíza, a certidão era de outra pessoa.

Depois de perceber o erro, o que a juíza deveria ter feito? Ela poderia fazer a movimentação, já que o caso tinha uma sentença, ou isso caberia a uma segunda instância? Esse é um caso inédito. Já houve casos em que a certidão de óbito era falsa e o próprio juiz que extinguiu a punibilidade teve poder de rever sua decisão, considerando que a certidão falsa não permite o trânsito em julgado da decisão. Nesse caso específico, não houve falsidade, mas sim erro da juíza. Como ela não é parte do processo, somente o MP poderia recorrer da decisão para o tribunal reverter a decisão. A juíza agiu como interessada no processo, o que não é permitido pela Constituição Federal (princípio da imparcialidade do juiz). A juíza deveria ter intimado o MP para apresentar recurso. 

Caberia alguma punição à juíza neste caso? A negligência em incluir uma certidão de óbito de outra pessoa admite procedimento disciplinar administrativo pela corregedoria do tribunal e do CNJ. Por ter agido por conta própria, não haverá punição porque, infelizmente, nossa jurisprudência autoriza o juiz a agir de ofício, como se fosse parte do processo, mesmo sendo uma afronta à Constituição Federal.

O que acontece com o réu agora? Ele volta automaticamente ao processo? Se o tribunal reconhecer que o ato anterior era nulo, o processo volta do ponto em que a extinção da punibilidade foi declarada.