Juízes 'trocam' tribunal pelo tablado e encenam peça em Salvador

Nove magistrados de grupo teatral do TJ-BA apresentaram peça no Pelourinho

  • Foto do(a) author(a) Maryanna Nascimento
  • Maryanna Nascimento

Publicado em 20 de dezembro de 2017 às 22:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Maryanna Nascimento/CORREIO

Foram quartas-feiras atípicas. Nove magistrados se reuniam, sempre no mesmo dia, por cerca de quatro meses, sem que, diante deles, houvesse qualquer réu ou lhes fosse cobrado qualquer tipo de decisão sobre a vida de alguém.

Não à toa, as togas foram deixadas de lado. Aliás, despir-se de qualquer vergonha foi um pré-requisito para aceitar o desafio. E, além disso, as formalidades foram às favas: em nenhum momento foi ouvido um ‘vossa excelência’. Na verdade, as sessões extraordinárias até se assemelhavam à rotina daqueles juízes e desembargadores: envolvia violência e guerra, mas também amor. Eles estavam ali porque trocaram audiências e sentença pelo teatro — mas só depois do expediente.

Nesta quarta-feira (20) aconteceu mais um desses encontros, só que um pouco mais sério o negócio. O juiz corregedor Alberto Gomes, a juíza assessora Angela Bacelar; a juíza assessora especial da presidência, Marielza Brandão; as desembargadoras Fátima Carvalho e Nágila Brito e os magistrados Darilda Maier, Janete Fadul, Laura Scalldaferri e Nartir Weber encenaram ‘O homem do princípio ao fim’, de Millôr Fernandes.

Juntos, eles integram o grupo de teatro dos magistrados do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), o JustArte — projeto implantado na gestão da presidente Maria do Socorro Barreto.

A peça foi montada em agosto deste ano, sob direção artística das atrizes Deborah Moreira e Márcia Andrade, e apresentada no Teatro Sesc-Senac, no Pelourinho.

No tablado, os magistrados se abraçavam, sorriam, gritavam, imitavam animais — de vaca a girafa — e até pariram. À primeira vista, não parecia impossível que tanta coisa coubesse em apenas 1h15 de espetáculo, mas se tratando de Millôr, era justificável. O 'livre atirador', como se definiu em uma entrevista ao Roda Viva (TV Cultura), em 1989, conseguiu unir no texto um humor ácido dentro de dramas cotidianos.

No meio do caminho, ainda havia a colagem teatral (inserção de outros textos) para dificultar ainda mais a digestão da peça: de Shakespeare a Camões, muito som, fúria e lirismo.

Da criação divina à 12ª Guerra Nágila, com sua postura de quem costuma decidir o destino das pessoas, assumiu o início da apresentação. Ela era Deus e, assim como faz diariamente no seu ofício, definiu a vida de muita gente: criou da água à Via Láctea. Ao perceber que tinha uma sombra, fez um ser à sua semelhança: Adão, ou Alberto.

Na sequência, Eva, ou Nartir. Depois da maçã proibida e de uma fornicação entre o casal que abre o texto bíblico, a apresentação seguiu imitando a vida.

Houve crise de ciúmes, rainha má, velhice — “ser gagá é olhar os brotinhos que passam em uma última esperança” — e a 12ª Guerra Mundial, que deixou um colapso na civilização e dizimou livros, obras de arte, casas e humanos — “homem, mulher e criança se tornaram inferiores em relação aos animais mais inferiores”.

Até que o amor renasceu no mundo, enquanto os juízes cantavam 'Vida', de Chico Buarque, célebre na voz de Maria Bethânia: “Sei que além das cortinas são palcos azuis e infinitas cortinas com palcos atrás”.

Jornada Mas o que eles acham da jornada dupla? Janete diz que não há diferença. “É o que a gente vê no dia a dia: a mulher maltratada, violentada, o homem traído, os assassinatos, o ciúme. Todo o defeito do ser humano”, explicou.

Nágila concorda com a colega de toga e de palco. “Às vezes somos atores também porque nas audiências do primeiro grau e nas sessões do segundo, é interessante ouvir a sustentação oral, que não deixa de ser um teatro… É aí que se apresenta a criatividade do verdadeiro ator”, faz metáfora.

Veja trecho do ensaio: