Lá vem Bela Gil com esse papo de casamento aberto

Coragem, mesmo, é assumir que todas as relações são abertas por natureza. Todas. Sem exceção

Publicado em 19 de fevereiro de 2022 às 11:00

- Atualizado há 10 meses

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Na semana passada, aquela linda chef, filha de Gilberto Gil, disse que a gente pode substituir a monogamia por relações abertas. Ou melhor, ela disse que escolheu, na casa dela, admitir a possibilidade de uma dieta variada. Mais simpática à essa receita do que à de melancia assada na brasa, achei fofo o post meio-político-meio-romântico de comemoração aos 18 anos de casamento com aquele rapaz. 

Depois de ler o post republicado, não resisti ao perigoso território dos comentários de passantes. Raramente uma experiência agradável, mas sempre bom termômetro do pensamento mais comum. Desta vez, conforme esperado, o estrebuchamento coletivo gritava sobre "libertinagem", "semvergonhice" e perguntava se o moço tem certeza de que é pai dos dois filhos do casal. Que sono que dá. 

Pela lógica da maioria dos comentários que li, a monogamia nos é super natural e a "traição" não é a tal. É da natureza humana a escolha de um/a parceiro/a por toda a vida, assim como fazem as graciosas ararinhas azuis. Inclusive, mesmo quando desejo e oportunidade se apresentam, juntos, sempre resistimos bravamente às maiores tentações porque foi o que prometemos na frente do juiz, do padre ou depois de umas taças de vinho ao luar. 

Parece que estamos todos/as felizes assim. Que ninguém mente nem esconde nada nem transforma o/a parceiro/a em adversário. Nem em estranho/a. Ou o que mais seria alguém de quem se desconfia e de quem se esconde desejos e fantasias também sexuais? Ninguém dorme com o inimigo, né? Pelo jeito, acasalamos, todos/as, na mais perfeita harmonia e paz. Depois, Bela que é doida. Ô, gente, pára. 

Não vou me aprofundar, aqui, sobre a invenção do amor romântico nem sobre a relação entre monogamia e controle social. Muito menos sobre o hábito estrutural masculino de "trair" por esporte, naquela reafirmação de "masculinidade" e tal. Coisa antiga, entediante, comum. Talvez eu queira só lembrar que "a amante" sempre fez parte da família tradicional. Mal-escondida, quase sentada à mesa. No singular ou no plural. 

Não quero chover no molhado, repetindo o que você já sabe: "traição" masculina é coisa esperada, às vezes, dizem, a "culpa" é da própria mulher que não sabe segurar o macho. O problema é só quando a mulher "pula a cerca" que aí vira "aquela vagabunda" e pode até ser morta pelo "corno" que agiu "sob forte emoção". Desse enredo eu já cansei. Pura obviedade. Hoje, não me ocupo disso. Vamos falar sobre pessoas e relações em outro nível de profundidade? 

O que difere Bela de todas aquelas pessoas incomodadas nos comentários (e, talvez, de você, quem sabe?) é uma coisa só: coragem. Não por expor uma escolha tão pessoal. Até porque talvez nem seja algo tão pessoal. Eu mesma - militante de modos e costumes - vejo como posicionamento político, um assunto importante sobre o qual acho essencial falar. Coragem, mesmo, é assumir que todas as relações são abertas por natureza. Todas. Sem exceção. Inclusive a sua, a minha e a dos nossos pais. A gente concordando ou não, tá? 

Não há controle possível do desejo alheio, essa é a verdade. Nem sobre o nosso próprio desejo temos tanto poder assim. Justamente por isso, pela desesperada constatação dessa impossibilidade, é que existe essa agonia toda, o trabalho exaustivo na criação e manutenção de instrumentos de contenção e organização de afetos, tesões, fantasias e orgasmos. Um esforço danado. 

(Tem casal que até na masturbação um/a do/a outro/a tem a ilusão de que pode mandar.) 

"Blindar", assinar, jurar, prometer, ritualizar a exclusividade. É tudo quase ridículo se fizermos o exercício de examinar o caso tentando um olhar inaugural. Nada disso funciona, nada garante e nós sabemos. Mas, também, ainda não conseguimos viver sem a fantasia de que "você é só meu e eu só de você". O que Bela nos diz é o básico "ninguém manda em ninguém". O óbvio que, na vigência do amor romântico, temos horror de admitir. Que dói, eu sei. 

Exclusividade é só uma possibilidade agradável. É bom também. Mas sempre acaso, circunstância, por vontade. Na maioria das vezes, temporária, cíclica, instável. Se/quando o desejo se expande, a pessoa vai. Se necessário, mente. É da nossa natureza. Simples assim. Ou até não vai, faz o sacrifício, sente medo, faz um esforço retado pra não perder os benefícios do contrato. Aí, a quem interessa dar e receber exclusividade porque foi o "combinado"? Não a mim. É sério que isso é amar e ser amado? Amor não é pra ser diversão? Profundidade? Entrega? Intimidade? Transbordar? Em tese, todo mundo concorda que sim, mas achamos normal viver exatamente o contrário. 

Então, é o seguinte: a escolha é só se vamos mentir ou assumir a verdade. Talvez seja apenas decidir entre relação "honesta" ou "fechada". O que, tô sabendo, apesar de parecer muito simples, não é uma decisão fácil. Os instrumentos que inventamos definem quem é "mocinho" e quem é "bandido", papéis que adoramos distribuir. Também garantem que a gente tenha "razão" na hora de dar o faniquito porque o objeto do nosso desejo desejou outra pessoa e isso é "errado". Demos um jeito de legitimar a zanga, a dor, as separações com culpados/as. Isso não deixa de, mesmo pelo avesso, ser uma certeza, um lastro. Conforto, até. 

Acho linda a possibilidade de encontros humanos menos rasteiros, mais sofisticados. O que não quer dizer mais fáceis. Nada é simples nas relações humanas. No máximo, a gente, às vezes, pode escolher que tipo de problema prefere encarar. No meu caso, atualmente (nem sempre foi assim, claro), o "problema" honestidade me parece mais fácil de lidar. Assumir que toda relação é aberta tem me trazido um alívio e uma liberdade ancestrais. 

O outro está posto, não há nada nele que eu possa mudar ou controlar. Quero ou não quero, me ocupo do que me cabe, portanto. Apenas ir ou ficar. Também cuido do que sinto, que é sempre um mergulho bom. De minha parte, ofereço o que posso com cada vez mais sinceridade. O outro é livre, eu também sou. É isso que Bela nos diz. É isso que repete Regina Navarro Lins (escute essa mulher!) há décadas, e tanta gente mais.Talvez seja esse o pulo do gato. 

Talvez seja o que, no fim das contas, a gente possa chamar de amor: ficar apenas por querer ficar, bastar só por querer bastar, ir e voltar, apesar de tantas possibilidades. Quando É, maiúsculo, a gente se junta, independente de qualquer trânsito ou contrato. Sobrevive. Acontece. Não sei, mas acho que a verdade é a maior aliada do amor que vale a pena. A verdade que, em nossas contradições, tratamos como rival. 

*Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo