'Levo um pouco dessa informalidade, dessa alegria', despede-se dom Murilo

Por conta da idade, arcebispo colocou cargo à disposição

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 14 de outubro de 2018 às 05:05

- Atualizado há um ano

. Crédito: Almiro Lopes/CORREIO
Dom Murilo conduz procissão de Ramos em 9 de abril deste ano por Evandro Veiga/ARQUIVO CORREIO

Após sete anos e meio de convivência com o povo da Bahia (chegou aqui em 2011), uma das maiores autoridades católicas do país dá uma aula de baianidade e do "ser baiano". Tanto para o lado positivo: “O espírito de acolhida, de informalidade e de confraternização”. Quanto para o negativo: “Muitas vezes uma autoestima muito baixa, um pessimismo exacerbado”. O catarinense Murilo Sebastião Ramos Krieger, o dom Murilo, arcebispo primaz do Brasil, atendeu ao CORREIO sem muita formalidade, como se fosse um soteropolitano conversando em uma praça qualquer. “Penso que a cidade deveria ter mais praças. O soteropolitano gosta dessa convivência com o outro, gosta de bater papo, jogar conversa fora. Levo um pouco dessa informalidade, dessa alegria”. 

No dia 19 de setembro, dia do seu aniversário, dom Murilo, em forma de carta ao papa, colocou-se à disposição para deixar o cargo. Seguiu o Código de Direito Canônico em vigor, aprovado em 1983, que rege as regras da Igreja Católica. Ao completar 75 anos, todo e qualquer bispo apresenta sua renúncia ao papa.

“Se julgou que é uma idade já avançada. A pessoa pode estar em condições? Pode! Mas às vezes quem não tá em condições acha que tá. Aí a pessoa fala: ‘Não, eu tô bem’. E os amigos confirmam: ‘Você tá ótimo’. Mas, nem sempre é verdade. Cabe à Igreja estudar a situação de cada um”.

E o que constava nesta carta? “Escrevi: ‘Olha, completei 75 anos e estou à sua disposição”. Dom Murilo pode não sair logo. Aliás, em alguns casos, a substituição do arcebispo primaz (referência à primeira diocese do Brasil) demora alguns anos. Seu antecessor, Dom Geraldo Magella, assumiu em janeiro de 1999 e ficou até 2011. Só deixou o cargo três anos depois de completar 75. “Eles avaliam. Às vezes demora um ano, dois. Em alguns casos chega a completar 77, 78 anos. O certo mesmo é que não passa de 80 anos”.

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Dom Murilo é o 27º Arcebispo de Salvador. O primeiro, Dom Gaspar Barata de Mendonça, assumiu em 1676 e ficou até 1681. Nesta entrevista que concedeu ao CORREIO na Cúria Metropolitana, dom Murilo se disse tranquilo. Alimenta o sentimento de dever cumprido. Deve voltar para o Sul do país quando deixar o cargo. "Não vai faltar o que fazer. Vou continuar trabalhando pela Igreja". No bate-papo, falou também sobre baianidade, sincretismo religioso, mediação de greves, a luta pela preservação do patrimônio histórico, futebol e a saudade que vai sentir da Bahia quando voltar para o sul. 

Confira entrevista:

O que a Bahia lhe deu nesses sete anos e meio? Caetano está certo quando diz que a Bahia tem um jeito? Uma coisa que me tocou muito desde o início foi o espírito de acolhida. Essa capacidade não só de deixar o outro à vontade. Mas você sente que aquela acolhida é sincera.  Não é nada formal. Se você visita uma pessoa muito pobre, ou rica também, e ela não tem muita coisa para lhe oferecer, ela dá um jeito de te oferecer algo. Se for só um café, ela fica sinceramente feliz de lhe oferecer o café. Isso cativa. É uma maneira simples e cativante de ser.

Você acaba absorvendo isso. A Bahia me deu um pouco dessa informalidade. Eu venho de uma região alemã, mais formal. Aqui é tudo muito simples.  Aliás, tem muito baiano indo trabalhar nas fábricas de confecções da região de Brusque, em Santa Catarina, de onde eu vim. E as pessoas comentam comigo: ‘Puxa, o baiano tem um jeito próprio, né’.  São valores que devem ser cultivados. Alegria, confraternização e convivência. 

Seria a baianidade? É um povo que gosta de conviver com o outro. Salvador, por exemplo, é uma cidade que deveria ter mais praças.  O povo aqui gosta de ir pra praça pra conversar. Às vezes estão até bebendo na praça ou no bar, mas a bebida ali é o que menos importa. As pessoas estão ali conversando. É uma pena que a cidade não reservou espaços para a convivência com a comunidade. Nem sempre se soube destacar esse aspecto na organização da cidade.

Como um catarinense recém chegado de Brusque enxergou o sincretismo religioso e enxerga hoje? A religiosidade baiana lhe enriqueceu?  Há uma alma religiosa aqui. Não digo religiosa só de Igreja Católica. Há uma experiência do divino, uma atração pelo divino muito forte.  E para uma boa convivência religiosa o respeito mútuo é essencial. Tem que olhar o outro não como adversário ou inimigo, mas como irmão.

O que eu noto é que às vezes se fala muito em sincretismo, noto que há muita teoria, mas não acho que haja tanta mistura. O sincretismo não passa de pessoas de outras religiões, como o candomblé, que se sentem bem em viver aquela experiência católica. Eles vão na igreja e respeitam. Vão lá porque gostam! Da mesma forma que eles respeitam o católico que vão no candomblé. Essa boa convivência é essencial.  

O sincretismo de uma maneira geral é negativo. Por que? Porque é uma mistura de várias religiões. Mas o que vejo aqui é cada um com sua religião, mas convivendo e frequentando a religião do outro porque se sentem bem. E às vezes isso acontece na mesma família. Por isso, vejo com naturalidade manifestações como as missas na Igreja do Rosário dos Pretos e a Festa do Bonfim.

Quanto à Lavagem do Bonfim: nasceu de uma necessidade prática, qual seja, a limpeza da igreja para a festa que se aproximava. A partir daí, nasceram uma série de tradições. Não creio que faça parte dessas tradições o uso de bebidas alcoólicas; aqui, quem se aproveita muitas vezes dessa festa foram as revendedoras de cerveja... Mas agora, com a procissão comandada pelo Santuário, que antecede a outra, está se recuperando mais e mais o sentido religioso dessa tradição...

Mas outras lideranças católicas do passado chegaram a bater de frente com essas questões. No mesmo cargo do senhor, dom Lucas Moreira Neves criticava o lado popular da festa do Bonfim e do Bom Jesus dos Navegantes, por exemplo. A Igreja amadureceu de lá para cá? Durante muito tempo, havia um sentimento de que era preciso acentuar sua identidade diante do outro. Hoje as pessoas conseguem se perguntar: ‘Mas porque o outro pensa diferente de mim?’. Alguma razão deve ter. Se ele tem outros valores, outras formas de demonstrar a sua fé, alguma razão deve ter e quando você vai descobrindo, simplesmente enxerga que esses valores não são tão diferentes assim. 

Tem como fazer um balanço desses sete anos e meio à frente da primeira arquidiocese do Brasil?  Para um economista, um comerciante ou um industrial é fácil fazer um balanço. Eu trabalho no campo espiritual. Eu não sei o que acontece no coração das pessoas. O próprio Jesus disse que a função da gente é semear. Por isso, gostei de ter ajudado e resgatar um pouco o amor próprio desse povo. Sei que é uma contribuição modesta, mas quando eu cheguei aqui me chocou um pouco a baixa autoestima do baiano. 

Podíamos aprender um pouco com o povo de Recife, mais orgulhoso de sua cultura? Mais orgulhoso por muito menos (risos). Vou dar um exemplo: qualquer lugar que tivesse só uma de nossas igrejas faria festa. Só uma! Sabe a Catedral Basílica, recém restaurada? Muitas igrejas gostariam de ter apenas um altar daquele. A catedral tem 13 altares maravilhosos. Muitas vezes não valorizamos o que temos. Aqui tem uma gastronomia, uma história, uma cultura incrível. O baiano muitas vezes fica olhando para o vizinho e tem uma tendência ao pessimismo. Tenho consciência de que sempre procurei exaltar nossos valores e fazer o melhor. 

Qual o maior desafio que viveu à frente da Arquidiocese? Não é possível ignorar o nível de pobreza e de miséria de parcela considerável de nosso povo e o máximo contraste disso com tanta gente rica. Poucos lugares têm tanta gente rica e tanta gente pobre.

Dói ver tantas necessidades materiais sem poder fazer muita coisa concreta. Penso que um bispo deve incentivar as pessoas a repartirem seus dons e seus bens e, principalmente, motivar os empreendedores a multiplicar empregos; os governantes a serem justos e criativos. Como a minha riqueza pode melhorar a vida das pessoas da minha cidade e consequentemente da minha própria empresa? Esse bem volta para você! 

Se tiver que listar os principais feitos realizados como líder religioso em Salvador, quais o senhor listaria?  Temos um patrimônio sacro imenso. Por isso, me esforcei para que nossas principais igrejas fossem restauradas. Graças a Deus, a Arquidiocese viu serem restauradas a Igreja de S. Pedro dos Clérigos, a de S. Domingos de Gusmão, a Igreja do Passo (ligada ao filme “O Pagador de Promessas”), a Catedral Metropolitana, a de S. José do Corpo Santo, a da Vitória, a do Santíssimo Sacramento e Sant´Ana – além de outras igrejas que estão ainda em fase de restauração, como é o caso da Igreja da Saúde e de duas igrejas que agora pertencem à Diocese de Cruz das Almas: a de Santo Amaro e a de Maragogipe.

Além disso, estão bem adiantados os trabalhos de restauração do Palácio da Sé, que deverão ficar prontos no começo do próximo ano. Outro trabalho que julgo importante foi a criação da Diocese de Cruz das Almas, a elaboração do que eu chamo de “Direito Canônico Diocesano”: trata-se de um livro com todos os Estatutos, Diretórios, Regimentos e Subsídios da Arquidiocese que, inclusive, está sendo muito útil para diversas dioceses do país.

Recentemente, como o senhor disse, a Catedral Basílica foi restaurada. Como a Igreja tem atuado junto ao poder público para a preservação desse patrimônio?  A gente procura mostrar que esse não é um patrimônio da Igreja, mas da humanidade. Numa época de tantas necessidades do país, não é fácil valorizar o investimento na cultura. Mas, graças a Deus, tenho sentido que muito está sendo feito no campo das restaurações. Nesse ponto, o diálogo com o Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional] foi essencial, pois ele muito nos apoiou. O que talvez nos falte é a consciência de que as entidades governamentais não podem fazer tudo. A sociedade organizada e, particularmente, a iniciativa privada, muito podem fazer nesse campo, e começam a fazer.

Se reclama muito que algumas igrejas do Centro Histórico ficam fechadas e não têm horários de visitação.  Existe algum projeto para criar um roteiro turístico de igrejas? Salvador é uma cidade turística. Pela história, pelo patrimônio sacro, artístico, pela gastronomia. Por isso, a igreja precisa trabalhar também em função disso. Está sendo estudado um roteiro pelo Padre Manoel Filho e vamos determinar esses horários. Um dos grandes problemas é a segurança. Ladrões. É um risco muito grande se uma igreja como a catedral não tiver dois ou três guardas. E acontece à luz do dia. Estamos cuidando disso e dialogando com as autoridades para podermos organizar melhor e determinar esses horários. 

O senhor sempre esteve envolvido no papel de mediador de conflitos em questões importantes para a cidade, como a greve dos policiais, dos professores, dos rodoviários etc. Os líderes religiosos deveriam se envolver mais com essas questões? Tudo o que diz respeito ao ser humano diz respeito à Igreja. Afinal, não fazemos parte de um grupo de anjos que não têm problemas, mas de uma comunidade humana, onde cada um tem suas necessidades e desafios. Acredito que os que me chamaram para ser mediador fizeram porque viram que eu estou acima de grupos e que quero é o bem da comunidade.

Talvez eu surpreenda muitos ao dizer que não é muito difícil o papel de mediador, desde que a gente seja aceito pelos dois lados e que procure unir os contrários. Ser mediador é mostrar que uma solução é boa quando é boa para todos; que não é possível que haja um só vencedor; e que, pelo diálogo, descobrimos que nossas diferenças não são tão grandes quanto pensávamos. Uso muito do meu bom humor, o bom humor que aprendi com meu pai. Nessas horas, precisa de alguém que descontraia.  

Esse estilo conciliador e esse bom humor lembra muito o estilo do Papa Francisco. Já ouvi algumas pessoas fazerem essa comparação... Ele é muito melhor do que eu nisso (risos). Mas, penso que o mundo está muito sério, muito pesado. De repente você fala alguma coisa que quebra isso. Por exemplo: futebol. Basta falar de futebol que as pessoas começam a brincar. Em grupos opostos em outras questões, por exemplo, tem torcedores do Vitória e do Bahia. Aí pronto!

Aliás, Bahia ou Vitória? Já tenho problemas demais com isso. Eu sou Flamengo (risos)!  

Falando em futebol, como o senhor enxerga esse clima de acirramento nas eleições? Vejo este momento eleitoral com muita preocupação. Não me lembro de ter visto outra eleição tão polarizada, em que os ânimos se acirraram tanto. Há muito ódio no ar, muita mentira em forma de fake news nas redes sociais, muita divisão nas próprias famílias. No fundo, o que há mesmo é muita insatisfação nos corações e uma grande crise econômica, que afeta todas as pessoas e toda a sociedade. Também faltam figuras que cativem e despertem o respeito de todos os lados políticos, como já tivemos um Ulisses Guimarães, Tancredo Neves, Mario Covas. As pessoas que discordavam desses os respeitavam. Passadas as eleições, espero que a paz volte a reinar no país.

O que a Igreja tem feito e pode fazer para atrair a geração das redes sociais? Neste momento em que estou dando esta entrevista, está começando, em Roma, um Sínodo para os Jovens, com representantes de todos os países do mundo. A Igreja sabe que seu futuro depende dos jovens; sabe, também, que eles próprios é que podem e devem ajudá-la a encontrar uma resposta adequada para atingir aqueles jovens que não conhecem o Evangelho e, por isso, não se interessam por ele. Em outras palavras: a Igreja sabe que tem a resposta adequada para as inquietações das novas gerações. O desafio consiste nisso: como atingir o jovem de hoje, que vive envolvido pelas redes sociais, que ouve mil promessas e propostas de felicidade, e que se sente, muitas vezes, desorientado e vazio?

Em 49 anos como religioso, o senhor pensou em algum momento largar a batina?  Nunca. Em primeiro lugar, porque sempre me chamou a atenção a frase de Cristo: “Quem mete a mão no arado e olha para trás, não é digno do Reino de Deus”. Depois porque, em meu tempo de seminarista, pensava: É isso mesmo que quero? Tinha decidido que deveria tomar a decisão de ser ou não padre antes da ordenação; portanto, não poderia, depois, repensar minha decisão. Além disso, sempre me senti muito bem como padre. Nunca tive motivo para pensar diferente. Quando eu era jovem, fiz uma opção de vida: ser religioso na Congregação dos Padres do Sagrado Coração de Jesus. Segundo meus projetos pessoais, viveria sempre numa comunidade dehoniana (o fundador de minha Congregação chamava-se Padre Dehon; era francês). 

Sabemos que a saída do senhor não é imediata. Mas, o que o senhor pretende fazer após entregar o cargo? Se for para sair logo estou muito tranquilo. Vou trabalhar de outra maneira. O bispo tem muitas outras possibilidades além daquela de dirigir uma diocese. Quando o Papa S. João Paulo II me escolheu para bispo, deixou claro que a Igreja precisava de mim de uma maneira diferente da que eu imaginara. Assim, quando não tiver mais responsabilidade à frente da Arquidiocese de São Salvador da Bahia, voltarei para minha família religiosa – isto é, para os dehonianos -, no Sul do Brasil. Ali, me colocarei à disposição para os trabalhos que forem necessários, para a pregação de retiros, para as necessidades dos meus irmãos bispos... Quando isso vai acontecer, dependerá do Papa Francisco. Enquanto ele for me deixando por aqui, irei trabalhando normalmente.

A Bahia vai deixar saudade? Claro que manterei inúmeros laços com a Bahia. Vivo aqui há mais de sete anos. Gosto desse povo, de seu jeito simples e carinhoso de ser, de sua espontaneidade etc. Sempre que for necessária minha presença aqui ou que for possível voltar, voltarei. Além do mais, quem não gosta de rever amigos? Ainda não posso dizer, como Roberto Carlos, que “quero ter um milhão de amigos para poder cantar”, mas acho que já estou chegando perto...