Livrai-nos do mal: Senhor do Bonfim visita 48 bairros e abençoa cidade pelo fim da pandemia

Baianos rezam, choram e ajoelham-se na passagem do cortejo; ato ocorreu apenas outras três vezes na história

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 4 de abril de 2020 às 05:20

- Atualizado há um ano

. Crédito: Arisson Marinho/CORREIO

Como de costume, especialmente em se tratando de uma sexta-feira, Senhor do Bonfim acordou cedo. Dessa vez, porém, não iria ficar o dia inteiro imóvel, na parede do altar-mor, ouvindo o que os fiéis tinham a lhe dizer, confessar e exaltar. A missão (e não missa) era tão importante que ele só havia realizado algo semelhante em outros três momentos desde que chegou à Bahia, em 1745, trazido em uma embarcação portuguesa. (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) A situação de calamidade provocada pelo Coronavírus fez a mais importante imagem do catolicismo baiano se mover pelas ruas. Colocada em um carro do Corpo de Bombeiros, em uma cidade estagnada pela Covid-19, Senhor do Bonfim - na forma de uma réplica idêntica à original - pareceu ganhar vida, o que despertou a fé dos baianos por onde passou, desde os bairros mais nobres até as mais humildes comunidades.

No total, foram dez horas de cortejo e 48 bairros visitados. Antes de iniciar essa peregrinação, coube ao padre Edson Menezes lembrar: o que estava para acontecer a partir daquele momento seria algo histórico. No passado, a imagem do Bonfim percorreria as ruas para socorrer a cidade em outros três momentos de aflição e dor: em 1842, devido uma grande seca que atingiu Salvador e região. Em 1855, por ocasião de uma epidemia de cólera que matou um terço da população. E em 1942, pelo fim da segunda guerra mundial. 

De máscara no rosto, o padre falou ao microfone para uma plateia formada apenas pela imprensa e alguns fiéis que não atenderam aos apelos de ficar em casa e resolveram se arriscar. “Como aconteceu em outros momentos de aflição, de guerras, de pestes e flagelos, imploramos vossa clemência e proteção, salva-nos dos ataques da Covid-19 e concede-nos ânimo, alegria de viver e perseverança para cumprir o isolamento social”, clamou o padre, antes de cantar o hino ao Senhor do Bonfim, que já o aguardava em um prédio anexo à basílica.       (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Às 8h35, Senhor do Bonfim partiu para distribuir bênçãos nas ruas de diversos bairros da capital baiana. Desceu a colina e já encontrou diversas manifestações na Cidade Baixa, desde a Avenida Luiz Tarquínio, as ruas Fernandes da Cunha e Oscar Pontes e a Avenida da França. Devotos com o terço na mão se emocionaram. Muitos rezavam fervorosamente enquanto acenavam com lenços brancos. (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Na íngreme subida da Ladeira da Montanha, Senhor do Bonfim manteve-se firme. Dali enxergou a Baía de Todos os Santos em um lindo dia de sol e acessou a Cidade Alta. Antes de adentrar o coração do Centro Histórico, viu funcionários de uma obra de rua e do banco Bradesco, próximo à Igreja da Ajuda, pararem tudo o que estavam fazendo para ver e registrar a história. (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Relíquia

No seu terreiro, o de Jesus, quase ninguém o esperava, o que ele gostou, já que todos deveriam estar em casa. Não deixou de abençoar o espaço e os poucos funcionários da Faculdade de Medicina da Ufba que saíram para vê-lo. Na porta da Catedral Basílica, entreaberta, a relíquia de São Francisco Xavier, padroeiro de Salvador, exposta ali justamente para reforçar a fé dos católicos contra a pandemia. A escultura guarda um pedaço do osso do santo.

No Campo Grande, aplausos. Na Vitória, toalhas brancas nas janelas e fogos de artifício. Na Graça, os sinos da igreja tocaram com toda a força. Em um prédio próximo ao Farol da Barra, um músico tocava de sua janela o hino ao Senhor do Bonfim. “Emocionante! Em um momento tão grave podemos contar com Senhor do Bonfim para acabar com essa pandemia o mais rápido possível”, disse Cristina Conde, 65 anos, moradora da Barra. (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Podemos contar com Senhor do Bonfim e muito mais. Na Pituba, na Praça Nossa Senhora da Luz, Adilson Guedes, 51 anos, nos lembra que também temos uma santa. Com um estandarte de Irmã Dulce, disse que nossa fé é redobrada. “Os dois juntos vão interceder pela cura e erradicação do coronavírus”, acredita Adilson.     

De olho

É provável que Senhor do Bonfim não tenha gostado de ver abertos diversos estabelecimentos que deveriam estar fechados. Apesar dos decretos e recomendações, encontramos muitas portas abertas e gente na rua. “Venha Senhor do Bonfim. Venha que a nossa loja está aberta”, desdenhou uma mulher que estava à porta de uma loja de instrumentos musicais no Pelourinho. Sem saber ela que Bonfim está de olho em tudo.

De moradores de rua a policiais, de balconistas de farmácias a motoristas de ônibus, muita gente rendia homenagens ao Bonfim. O taxista fez o sinal da cruz. Houve quem preferisse as duas mãos no peito. Moradores de diversos bairros ajoelharam-se quando o cortejo passou. Podia ser no Itaigara ou em Cajazeiras, a fé era a mesma. Claro, sempre há os que preferem as críticas ou optam por ser intolerantes diante da fé alheia. “Jesus não está morto na cruz. Isso é maluquice”, bradou um evangélico em Itapuã.

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Mal entende que, apesar de se tratar de uma imagem, os que acreditam enxergam nela a esperança viva. Um respiro de fé nesses nada fáceis dias de isolamento. Um alívio no medo de se tornar vítima de uma doença. Não por acaso, muitos choravam. “Muita fé. É a única coisa que nos resta para contornar essa situação. Não importa de onde ela venha, tem que ter fé”, disse, sabiamente, o produtor de eventos Átila Pena, 50 anos.

De fato, Átila. Tanto que, nos diversos bairros que Senhor do Bonfim passou, recebeu o apoio de integrantes de terreiros, que saíam à porta emocionados. Filhos e filhas de santo podiam ser vistos fazendo todo o tipo de reverência e até chorando. Estavam diante de uma imagem que, no sincretismo religioso, representa Oxalá. Certamente, as religiões de matriz africana estão pedindo diariamente por Omolu, orixá da cura. Pois então. Na terra de Senhor do Bonfim, Oxalá, Irmã Dulce e Omolu, espera-se que Covid-19 pise nesse chão devagarinho. Amém!

Todos os outros momentos que Senhor do Bonfim deixou seu templo

Os outros momentos em que Senhor do Bonfim saiu da igreja para socorrer Salvador tiveram um grande significado histórico porque a cidade também sofria muito. Por volta de 1843, uma seca persistente castigou a capital e regiões próximas. “A Bahia passava por uma grande crise com a seca. As pessoas passaram fome”, afirma a historiadora Maryeli Cabral de Santana, autora do livro Alma e Festa de Uma Cidade, sobre a devoção ao Senhor do Bonfim.

Foi organizada então uma procissão desde a Igreja do Bonfim até o Centro Histórico. Jornais da época relatam, diz a historiadora, que no momento em que a procissão passava por São Joaquim caiu uma chuva muito forte. “A partir de então, todo o estado recebeu chuva e a crise foi minimizada. Foi algo muito forte e essa vitória foi atribuída a ele”, afirma a historiadora, que prefere fazer uma separação. De um lado estaria os momentos em que a imagem do Bonfim saiu da igreja por questões relacionadas à devoção e sofrimento da população. Do outro, há as datas em que a imagem saiu por aspectos políticos.  

Maryeli lembra que, em 1823, durante as guerras da Independência da Bahia, quando os portugueses tomaram a Colina Sagrada, a imagem de Senhor do Bonfim foi levada para ser abrigada na Igreja da Ordem Terceira de São Domingos, no Terreiro de Jesus. “Mas aí não foi por um motivo devocional. Não se pode misturar. Não dá para colocar tudo no mesmo balaio”, diz a historiadora, ressaltando que em 1923, ano do primeiro centenário da independência, a imagem também saiu da igreja, dessa vez por conta da inauguração da Avenida Sete de Setembro.

“Mais uma vez uma questão política induzida pelo então governador J.J Seabra. A imagem vai para a Igreja da Vitória para sacralizar uma obra pública”, ressalta. Por devoção e socorro à população, segundo o Padre Edson, a imagem do Senhor do Bonfim foi para as ruas novamente em 1855. Aí sim, por conta de uma crise: a epidemia de cólera morbus. A única epidemia capaz de fazer os soteropolitanos também se trancarem em suas casas, mas em proporção menor.

“A gripe espanhola matou muita gente, mas foi muito mais na Europa. Aqui o  problema mais grave foi o cólera, em 1855”, afirma o historiador Jaime Nascimento, do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB).  O cólera teria matado 25 mil pessoas, um terço da população da Bahia na época. Jaime Nascimento cita o livro A Morte é Uma Festa, de João Reis, em que aspectos daquele momento de pânico coletivo é descrito. “Morreu tanta gente que não se tinha onde enterrar. Foi a partir daí que surgiram os cemitérios fora de igrejas. Não havia onde enterrar os mortos”, conta Jaime.

Por fim, em 1942, novamente por um motivo de devoção e socorro, a imagem do Senhor do Bonfim é conduzida pelo povo baiano, numa grande procissão até a Basílica de Nossa Senhora da Conceição da Praia. O motivo desse gesto de fé e esperança era o anseio pelo fim da 2ª Guerra Mundial. Em todas essas ocasiões do passado, a imagem utilizada foi a original, do século 18, que atualmente não sai mais da igreja e fica no altar mor. Mais recentemente, foi feita uma réplica idêntica à original, a imagem peregrina, usada em momentos como o dessa sexta-feira (3).