Luedji Luna se inspira na diáspora africana em Um Corpo no Mundo

Cantora e compositora baiana estreia em disco cuja história começou a ser contada há três anos

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  • Da Redação

Publicado em 15 de novembro de 2017 às 06:25

- Atualizado há um ano

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Foi depois de ver Ellen Oléria, uma mulher preta, gorda e lésbica, vencer o The Voice Brasil, em 2014, que Luedji Luna conseguiu superar a crise de abandonar o Direito e toda uma formação voltada à carreira de funcionária pública para viver da música. “Foi uma epifania, um alívio ver a vitória daquela mulher, com aquele cabelo, com aquele corpo. Fugi muito da música e quando eu percebi que este mundo também era racista, que não oportuniza a existência de outros corpos, de outros discursos, veio a vitória dela para me dar fôlego. E aí eu comecei a pensar como a gente precisa de referência, de se ver no outro, para entender que nossa existência é possível”, lembra, ao enfatizar a importância da representatividade. Nascida em Salvador, Luedji Luna, 30, começou compondo, timidamente, ainda adolescente. “Fui uma adolescente muito silenciosa, foi esse meu jeito de existir no início. Com 17 anos escrevi a minha primeira canção, com letra e melodia, mas foi aos 25 que decidi cantar”, resume a cantora, cujo nome, Luedji, de origem angolana, foi dado pelo pai.

Em 2014, foi em busca de melhores oportunidades em São Paulo. Na maior capital do país, ela começou a dar forma ao projeto Um Corpo no Mundo, que também é o nome do seu primeiro disco, lançado em outubro.  Mas toda a história que inspira o álbum já estava sendo contada antes, desde que ela começou a se apresentar em São Paulo e percebeu um forte fluxo de imigrantes negros vindos do Haiti e de países da África na cidade. A partir daí, Luedji começou a pensar em si mesma e no seu lugar no mundo.   Antes do álbum também, Luedji já se fazia conhecida na internet, através da divulgação de uma série de vídeos amadores onde interpretava algumas de suas composições. “O divisor de águas foi o clipe de Um Corpo no Mundo, filmado pela cineasta negra Joyce Prado, de Brasília. Quando colocamos ele na internet, perdi o controle. As pessoas se sensibilizaram muito, tudo estava muito coeso, muito poético. Comecei a ter mais compartilhamento e mais seguidores a partir daí”, conta. Composto por 11 faixas, algumas inéditas e outras já conhecidas do público que a acompanhava em shows ou pelos vídeos do YouTube, o disco Um Corpo no Mundo foi contemplado pelo Prêmio Afro 2017 e carrega uma mensagem de questionamento e pertencimento sobre a  identidade, regidos por melodias que unem ritmos do congo e do batá cubano, com samba, reggae e o batuque baiano. A cantora, que já apresentou alguns shows em Salvador com o repertório do disco, planeja um lançamento oficial em fevereiro do ano que vem, depois do Carnaval.

Os músicos convidados para o trabalho são de diversas partes do mundo (Brasil, Cuba, Suécia, Quênia) e contribuíram coletivamente para a construção dos arranjos. “Essa junção resultou uma realização sem fronteiras e de difícil definição. Um Corpo no Mundo é um disco do mundo!”, explica a artista.  O trabalho lembra o do também baiano Tiganá Santana, cujos últimos discos também levam assinatura de Sebastian Notini, que produz o álbum de Luedji. “Já ouvi que sou a ‘Tiganá de saias’. Eu acho engraçado, porque muita gente faz essa associação. É uma música que parte do silêncio, mais minimalista. Ele também é muito ligado à espiritualidade, bebe dessa fonte africana. Também temos o mesmo produtor musical”, comenta. As composições variam muito em suas temáticas, que vão da herança negra ancestral à urgência do tempo presente. Em Cabô, uma das faixas mais tocantes do disco, ela se insurge contra o extermínio da juventude negra. “Compus depois de uma mobilização de artistas contra a morte de cinco jovens com mais de uma centena de tiros disparos pela PM carioca. É o choro de uma mãe preta. Quando eu canto, fico muito comovida, às vezes choro, a energia do show muda um pouco. As pessoas ficam emocionadas, tensas e eu me emociono muito. Pensei em tirar ela do show por isso, porque atrapalha um pouco a minha técnica vocal. Mas não só não tirei como coloquei no disco”, ressalta. As influências de Luedji são muitas, vão desde ao que escutava na casa dos pais na infância, como Djavan, Luiz Melodia e Milton Nascimento, passando pelo reggae de Peter Tosh e Bob Marley - de onde veio a paixão pelos graves e sopros -, até o rap e a música negra norte-americana. “Para o meu disco, também pesquisei muito essa sonoridade africana e escutei artistas como Sara Tavares, Aline Frazão e Mayra Andrade”, destaca.

Este ano, Luedji conquistou com seu trabalho o título de Revelação na categoria show do Prêmio Caymmi de Música, um dos mais importantes da cidade. "O Prêmio Caymmi foi importante demais na minha carreira. No primeiro ano não passei com a uma música que inscrevi, então fiz o show no início deste ano no Gamboa Nova e me inscrevi com vontade de ganhar. Foi muito surpreendente ver que também tinha sido contemplada em outras categorias, com a indicação como Melhor Intérprete e Melhor Clipe. Revelação é a palavra que tem sido atribuída a mim esse ano e eu fico muito lisonjeada. O peso da responsabilidade só aumenta, no sentido de manter o discurso, manter a qualidade na condução dessa trajetória, mas também foi o prêmio que conquistei em tão pouco tempo de carreira, eu que tive tanto medo de assumir a música... Veio me dar mais fôlego, dizer para mim que devo seguir", comenta. Ainda na busca pela representatividade e pela busca de espaços de visibilidade da produção de outras mulheres, Luedji tem tocado o projeto Palavra Preta, que reúne compositoras, poetas e artistas negras de diversas partes do país. Segundo ela, este é o projeto paralelo em que mais tem empenhado energia. Depois de inscrever em editais, espera que as próximas edições cheguem a três cidades. Além de voltar a Salvador, onde estreou ano passado, deve ir para Brasília e São Paulo.

“É importante entender que somos produtivas, diversas e plurais. A gente se sente muito isolada quando não se percebe na outra. A música brasileira precisa entender que nós existimos. Não somos só sambistas, rappeiras. A música brasileira precisa escutar essa vozes. Todo mundo tem esse direito, minha preocupação na vida é só essa. Só sobreviver, só conseguir ter dignidade já é muito. Não falo nem em fama, em ser diva, nada. Estamos aí”, finaliza.