Mãe de Davi Fiuza troca o luto pela luta: 'não tive filho para o Estado matar'

Hoje integrante da AI, ela viaja o mundo dando apoio a mães com dramas semelhantes

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  • Bruno Wendel

Publicado em 9 de agosto de 2018 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Betto Jr./CORREIO

O luto pela perda de um filho transformado em luta contra a perpetuação de uma cultura de violência. Assim a dona de casa Rute Fiuza encara sua missão de vida, hoje. “Eu jamais conseguiria ficar calada. Não tive filho para o Estado matar”, disse ela ao CORREIO, na manhã desta quarta-feira (8).

Mãe de Davi Santos Fiuza, 16 anos, desaparecido em outubro de 2014 durante uma operação da Polícia Militar no bairro de São Cristóvão, em Salvador, ela agora faz parte de uma organização internacional que defende os direitos fundamentais: trata-se da Anistia Internacional, pela qual ela viaja dando suporte a outras mães que tiveram filhos com o mesmo destino de Davi. 

“Fui uma pessoa muito pacata e hoje tenho essa função de abrir os olhos de outras mães. Às vezes, é só para escutar as dores. Me tornei a pessoa que escuta os desabafos, o choro. Tenho sido chamada também para muitas palestras. Hoje mesmo, estaria participando de uma discussão em Recife (PE) para falar sobre desaparecimentos forçados num debate sobre sistema prisional e o genocídio, mas não pude ir por causa da novidade sobre a morte de Davi”, declarou Rute, que atualmente mora em Feira de Santana.

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A Polícia Civil encerrou o inquérito que apurava o caso, indiciando 17 policiais militares pelo sumiço de Davi, e o enviou ao Ministério Público da Bahia (MP-BA). O órgão informou que a promotora de Justiça Ana Rita Nascimento já está analisando os três volumes apresentados pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), setor da Polícia Civil que analisou o caso, e informou que a situação vai ser totalmente avaliada até o final deste mês.

O inquérito contém 12 volumes e pretende explicar o que, de fato, ocorreu com Davi Fiuza, de acordo com as investigações. A Anistia Internacional pediu agilidade ao MP-BA para que os 17 PMs sejam denunciados à Justiça.

Luta O luto de Rute teve início em 24 de outubro de 2014. Policiais militares faziam uma operação final para obtenção do diploma de soldado, quando abordaram Davi na Rua São Jorge e o raptaram. Desde então, nunca mais ela viu o filho.

Até então, ela trabalhava no varejo, nunca tinha saído de Salvador, nunca passou dias fora de casa. Mas precisou mudar drasticamente sua rotina para buscar respostas sobre o que havia acontecido de fato com o seu filho.

“Deixei Salvador. As lembranças me torturavam. O Porto da Barra, que ele adorava; o McDonald's da Paralela, foi a última vez que estive com ele; o Dique do Tororó, morávamos perto... Salvador me traz muitas boas lembranças dele e ruins também, como o bairro de São Cristóvão. Nunca mais fui lá. Não tem como não lembrar. Eu não tinha consciência que eu era assim. Só me deu conta da minha fortaleza quando foi preciso prova”, declarou Rute. Rute Fiuza viaja para a Colômbia este mês para falar sobre sua batalha para saber o paradeiro do filho (Foto: AI/Divulgação) Durante o Encontro Internacional de Mães Vítimas da Violência do Estado, que aconteceu em maio deste ano em Salvador, Rute conheceu Marinete, mãe da vereadora carioca e defensora dos direitos humanos Marielle Franco, 38, morta a tiros no Rio de Janeiro quando voltava de um evento no qual palestrava, no dia 14 de março.

“Passei para ela toda força e coragem que tinha para ela continuar lutando. Conversamos sobre o que o Estado faz com as nossas vidas: desestrutura, acaba com os nossos planos. Apesar de bastante fragilizada, ela conseguiu passar também força para outras mães”, declarou Rute, que viajará para a Colômbia ainda este mês para participar de um debate sobre desaparecimento forçado e genocídio causado pelo Estado. 

Enterro Em suas orações matinais e noturnas, Rute pede pela família, pelos amigos e por Davi. “Peço que Deus dê descanso à alma do meu filho, para que refrigere essa minha dor e para que Deus me dê força para continuar lutando. Fica a esperança de que um dia a gente vai se encontrar de novo”, declarou. 

Quando não está na Anistia Internacional, Rute acorda bem cedo e vai de carro até a sua loja de doces, em Feira, que acaba sendo uma forma de ir retomar a vida aos poucos.“É o jeito que encontrei para ocupar outra parte do meu tempo, de também recomeçar minha vida”, disse ela. Além da prisão dos criminosos, Rute alimenta outro desejo, este mais difícil que o primeiro. “Ainda quero enterrar Davi. Sei que será quase impossível, mas tenho vontade. É como se encerrasse um ciclo. Já pensei até em um enterro simbólico, mas estou amadurecendo a ideia. Mas jamais ficarei calada. Jamais me acovardarei”, declarou Rute, bastante emocionada.