Mão de mãe é mão de mãe

Por Rogério Menezes

  • D
  • Da Redação

Publicado em 29 de abril de 2018 às 05:00

- Atualizado há um ano

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[Momento de trégua do cabo-de-guerra físico e psicológico deste inferno continuado no qual invernamos: aproveito fim de tarde cálida de outono e promovo sessão recreativa com os meus pés – mais  exatamente com os meus calcanhares, em cima dos quais todo o meu corpo desaba desde sempre. É chegada a hora do escalda-pés salvador: mergulho os calcanhares em água quente + nacos de sabonete, depois o resto dos pés. No torpor que se segue, o nirvana se estabelece].

Imerso nesse nirvana possível, tenho momentos de epifania. Tipo: 1. Leio em voz alta trechos assinalados de Molloy, de Samuel Beckett, assombro de vitalidade literária. 2. Vislumbro com clareza e tenacidade a descontinuidade deste inferno onde ora ardemos. 3. Invoco a proteção de almas e santos bons que, apesar de exauridos, ainda teimam em dar agilidade ao abano para que o meu fogo nunca se apague. 4. Afundo-me em caraminholas proustianas que me levam a agarrar com sofreguidão lembranças remotas que evidenciam a tonta-erraticidade, mas, também, a sublime-epifania que a vida nos proporciona.

As madeleines proustianas do meu + recente escalda-pés brotaram a partir do momento em que passei a massagear os meus calcanhares com o carinho e o afeto só possíveis em diletos e queridos companheiros. Numa miragem  avassaladora, vejo minhas mãos se transformarem nas mãos de minha mãe e minha mãe passa a afagar os meus pés com as mãos que me afagaram e me afagam até hoje – eu sinto e intuo.

[Em noites desesperadoras uso as minhas mãos à guisa das mãos de minha mãe, fecho o olhos, e arrasto as minhas-mãos-de-minha-mãe sobre o meu corpo nu. Vero: quando os 2 mg de Lorax não dão conta, esse método ‘caseiro’ me acalma, e me adormece].

O poder curador das mãos de minha mãe se materializou na infância: desconstruiu a imensa dor que sentia em torno das panturrilhas e das canelas em todos os finais de tarde. Os músculos se retesavam doloridos e, ai, como doía! Era como se os ossos se esticassem sem que houvesse ninguém a esticá-los. Os médicos diziam: - Tratam-se de dores do crescimento, são os ossos crescendo dentro do menino.

Quando minha mãe me repetia docemente essa cantilena, eu retrucava: - Por quê, mainha, só os ossos das minhas pernas crescem dentro de mim? Nunca  soube responder, mas, sempre disposta a amainar minhas dores, consultou, imagino, a voz do povo e, à época, a voz do povo era a voz de deus e tinha cura para quaisquer males.    

Uma voz do povo receitou-me ‘excêntrico’ remédio. Em todos os começos de noite – durante meses, talvez anos – minha mãe sentava-se no canto de sofá verde de veludo ensebado, e eu, com a cabeça no travesseiro que colocava no outro canto do sofá verde de veludo ensebado, deitava minhas pernas doloridas no colo de dona Águida.

Com mãos de fada, ensopava imaculado pano branco em certa dose de querosene (segundo o Houaiss, ‘destilado do petróleo, que contém hidrocarbonetos’), e fazia a minha dor sumir através de cada poro das minhas canelas e dos meus pés. [A dor – essa dor – nunca mais voltou].