Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Linha Fina Lorem ipsum dolor sit amet consectetur adipisicing elit. Dolorum ipsa voluptatum enim voluptatem dignissimos.
Malu Fontes
Publicado em 19 de março de 2018 às 09:51
- Atualizado há um ano
Para quem não a conhece a fábula: um velho e seu filho, criança, foram à cidade vender um burro, o asno, da família. Para o bicho não chegar à feira cansado, os dois iam a pé, puxando o animal por uma corda. Até que cruzaram com a primeira pessoa no caminho. Segundo o passante, aquilo era absurdo. Ambos a pé e um burro saudável sem carregar ninguém. O velho coloca o menino sobre o burro.
Outro passante: como pode um homem velho a caminhar enquanto um menino saudável segue montado? O velho coloca o menino para caminhar e ele mesmo monta. Aparece um terceiro: como pode ser insensível e ir montado enquanto uma criança vai a pé? Para evitar novas críticas, coloca o menino na garupa da montaria e seguem os dois conduzidos pelo burrinho. Até aparecer o quarto crítico: só mesmo a insensibilidade humana em grau máximo para colocar sobre um pobre burro dois corpos.
FANATISMO - Esta é a tradução das redes. Não importa o que você diga, faça, desfaça, conserte. Você sempre estará errado. Como quase tudo já foi dito sobre a execução de Marielle, exceto a elucidação do crime, vou me ater a alguns aspectos da cobertura. Marielle Franco, 38 anos, vereadora de 1º mandato pelo PSOL, no Rio de Janeiro, foi executada na noite de quarta-feira no centro da cidade. Seu carro foi atingido por 13 tiros de fuzil. Na quinta à noite, a revista Veja já estava com sua edição circulando. Com Marielle na capa e questionando a quem interessaria a sua morte: uma vereadora que denunciava a violência, quem a cometia e especificamente um batalhão da Polícia Militar do Rio, o recordista em mortes.
No telejornalismo da Rede Globo, sobretudo na prata da casa, o Jornal Nacional, e incluindo o seu braço hard news de TV por assinatura, a Globo News, todos, literalmente todos os espaços foram dados e abertos para a cobertura não só do crime, mas de todas as suas repercussões e manifestos. No Rio, no Brasil inteiro, no mundo. Todas as vozes foram ouvidas. No entanto, ao se posicionar em determinado momento em frente à Câmara de Vereadores do Rio, de onde saía o corpo de Marielle e do motorista Anderson, uma repórter da Globo News não conseguiu gravar. Um grupo partiu para cima da moça aos gritos: “Fora, Rede Globo”, até a repórter desistir. Já não era a homenagem, era o fanatismo que associa a Globo ao demônio. Essas pessoas devem esperar que a Record irá expulsar esse demônio da televisão brasileira e salvar o telejornalismo nacional.
MÓRBIDAS - Postei um print da capa da Veja com Marielle em uma rede social. Foi um ímã para os fanáticos. Não enxergavam sequer a imagem da capa. Passavam lá para manifestar o dogma e repetir um mantra que não estava em discussão: “Veja mente”. Mas a capa era a cobertura de um fato real, com uma pergunta real. Para ficar só nesses dois casos: se nem a Veja nem a Globo cobrissem a execução de Marielle, seriam linchadas. Como, naturalmente, cobriram, continuaram cobrindo e continuarão, foram conduzidos à categoria de fdps oportunistas, aproveitadoras mórbidas, interessadas em audiência, leitores, cliques.
Marielle era lésbica e vivia com sua companheira. Gente famosa se inflamou nas redes sociais porque a viúva não foi ouvida, como a viúva do motorista Anderson foi, pela Rede Globo. Era um explícito preconceito. Alguém sabe se a moça queria falar após a tragédia? Se tinha condições emocionais para dar entrevista? O Fantástico a entrevista.
Os conselheiros da fábula do burro se manifestam. Acham uma falta de respeito. Onde já se viu viúva de mulher? Outros, ativistas, ficaram possessos por outra coisa: a Globo está se apropriando da narrativa das lésbicas e isso não é bom. É oportunismo, mirando um novo público. Ou a moça se rendeu ao sistema e pegou carona na morte de Marielle para aparecer. O certo seria viver seu luto longe das câmeras. Moral da história: burro não é animal da fábula.
Malu Fontes é jornalista e professora de jornalismo da Facom/UFBA.