Massacres, suicídio e como o jornalismo lida com isso

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  • Malu Fontes

Publicado em 18 de março de 2019 às 05:51

- Atualizado há um ano

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Das páginas dos principais veículos de informação às postagens de pessoas comuns, que não são especialistas em nada e muito menos têm a ver com jornalismo, a não ser a condição de leitores e telespectadores, choveram críticas à forma como as empresas de comunicação brasileiras expuseram imagens e detalhes chocantes dos responsáveis pelo massacre na escola de Suzano (SP), onde 10 pessoas morreram, incluindo os dois assassinos. Cenário relativamente frequente de casos semelhantes, em que garotos muito jovens decidem que vão matar inocentes sem qualquer razão, os Estados Unidos, se não têm muito a ensinar como evitar tragédias como essas, se autorizam a reivindicar para si a autoridade de dizerem o que é recomendável e o que é inadmissível em termos de comportamento da imprensa na cobertura de episódios desse tipo.

Com uma longa história do que eles hoje chamam de “mass shooting”, tiroteios em massa, os americanos têm hoje uma espécie de protocolo que reivindicam à imprensa do país colocar em prática quando uma nova tragédia dessa natureza acontece. A ordem imperiosa é: primeiro, impedir a todo custo que os autores, independentemente de estarem mortos ou sobreviverem e serem presos e condenados, ganhem notoriedade pelos meios de comunicação. Segundo, evitar ao máximo que os métodos usados e as etapas e os cenários do planejamento do ataque sejam noticiados. A recomendação preponderante é a de que a imprensa deve concentrar a cobertura nas vítimas, na ação da polícia, no atendimento aos feridos e no tratamento das sequelas psíquicas de todos os envolvidos. Nem o nome dos criminosos, recomendam, devem ser publicados. Não se deve chamá-los pelos nomes, mas como “os atiradores” e outras variações. 

Assinatura do crime  Descrever em detalhes os autores desses massacres, exibi-los com destaque em fotografias ou imagens em vídeo,  biografá-los e descrever suas rotinas nas vésperas dos ataques é considerado um gesto jornalístico ao mesmo tempo de estupidez e de incentivo para que novos desajustados entrem em cena, e supostamente encorajados pela cobertura, copiem o comportamento dos antecessores. Os protocolos criados a partir da repetição de casos desse tipo nos Estados Unidos não mostram nenhuma evidência de que seguir essas recomendações impede novos massacres. Talvez por isso, não há consenso entre os próprios jornalistas, nem entre os veículos, sobre as fronteiras do que se pode ou não dizer e publicar sobre os autores. 

Pesquisadores de fora do campo da comunicação e do jornalismo, no mundo inteiro, provam por A + B que o objetivo maior dos autores dos tiroteios em massa, mais ainda do que as mortes em si e do que o número de vítimas, é alcançar o máximo possível de repercussão na imprensa, na mídia de um modo geral. Vale lembrar que boa parte dos casos saem das manchetes e se tornam livros, documentários, filmes e até temas de canções, clipes e inspirações para games. 

Para estudiosos desse tipo de crime, a repercussão na imprensa, e depois na indústria cultural, é o prêmio buscado desde a primeira ideia dos criminosos. Ter seus rostos e nomes com destaque nos veículos é como imprimir no mundo a assinatura do crime na história, a legitimação da fama, a comprovação, mesmo se estiverem mortos, do quanto foram bem-sucedidos em seus planos de causar pânico e desestabilização do sistema social do qual fazem, ou faziam, parte.

Suicidas  A forma como os consumidores de informação se comportaram no caso do massacre de Realengo, ocorrido em 2011, no Rio de Janeiro, e agora, no caso de Suzano, deixa claro que a exibição dos criminosos e dos vídeos com cenas fortes provocou reações completamente diferentes. Um dos maiores jornais impressos brasileiros, o Estadão, recebeu uma avalanche de críticas por publicar, na capa e com destaque, uma foto colorida de um dos criminosos de Suzano, usando uma máscara, empunhando uma arma e em uma posição de ameaça e desafio. Para o público, era a imagem da heroificação de um assassino. Não à toa, fóruns de reuniões da chamada deep web e dark web, a dimensão da internet onde se dá a prática e a discussão sobre tudo o quanto é tipo de crime, comemoraram a foto, a manchete e a veiculação das imagens. 

Voltados para promover o ódio e pregar a morte de negros, gays, mulheres, pobres e nordestinos, esses fóruns fechados, chamados de chans, consideraram os dois assassinos heróis extremante bem-sucedidos em seu objetivo de conseguir gerar repercussão na imprensa. A foto na capa dos jornais foi comemorada como uma espécie de vitória em um campeonato. O que os críticos ao uso dessas imagens na imprensa cobram do jornalismo, com adeptos inclusive dentro de alguns veículos, é que seja dado aos autores desses tiroteios o mesmo tratamento jornalístico dado aos suicidas. 

Cúmplice  O suicídio é um dos principais tabus do jornalismo, e, a não ser que a vítima seja uma personalidade famosa, a orientação é ignorar o fato. Noticiá-lo é sinônimo de estímulo à imitação do gesto por parte de pessoas depressivas ou vulneráveis. Do mesmo modo, diz-se agora que dar divulgação ao nome, às imagens e aos métodos de planejamento dos atiradores em massa é risco certo de levar outros jovens violentos e desajustados a adotarem práticas semelhantes para tornarem-se “imortais” ao serem objeto de notícia. O desafio do jornalismo sob essa acusação não é pequeno: como informar a população sobre todas as variáveis de crimes tão complexos sem correr o risco de entrar para a história como coadjuvante de crimes tão perversos?

Em outras palavras, o que os protocolos defendidos como norteadores para a imprensa nos Estados dizem é mais ou menos o seguinte: se a imprensa publica fotos de autores de tiroteios em massa, se explica os passos que esses sujeitos deram do planejamento à execução do massacre, em um próximo massacre a imprensa pode ser responsabilizada como cúmplice, pois a publicização do nome, das fotos, do método, podem ter sido o gatilho que desencadeou o próximo episódio. Essa acusação faz sentido? 

Moleques  Se sim, como o jornalismo vai cumprir o seu papel de informar à opinião pública com o máximo de informações possíveis, sobre determinados fenômenos, se o cumprimento desse papel o leva para o banco dos réus? E até que ponto é justo, sensato ou verossímil comparar gestos de imitação de criminosos, contra terceiros, com gestos de autoflagelo contra si mesmos, como é o caso dos suicidas? Uma outra pergunta sem resposta fácil: quando, diante do crescimento significativo dos índices de suicídio, principalmente sobre jovens, determinados segmentos da sociedade civil dizem “precisamos falar sobre o suicídio” (como uma das formas de prevenção das causas do ato), de verdade, o que isso significa? Que precisamos todos falar sobre o suicídio, exceto o jornalismo, passível que é de ser acusado de, uma vez falando do fenômeno, ser apontado,  como responsável, paradoxalmente,  por estimular novos casos? Respostas sensatas são bem-vindas. 

Aparentemente, é razoavelmente fácil compreender que o suicídio de uma pessoa não é uma informação de interesse público e que isso diz respeito exclusivamente à família, que deve ser preservada da dor que é ver um assunto íntimo como esse estampado nos jornais. Mas por que não é de relevância pública publicar como dois moleques imberbes planejaram matar crianças e adolescentes numa escola? 

Malu Fontes é jornalista e professora de jornalismo da Facom/UFBA