Mestre de jiu-jítsu morto pela polícia saiu de casa pra treinar, diz família

Esposa diz que vai procurar Corregedoria da PM; 'quero ver as marcas de tiro' do carro

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  • Tailane Muniz

Publicado em 4 de dezembro de 2018 às 08:05

- Atualizado há um ano

A família do mestre de jiu-jítsu Irailson Gama Costa, o Sinho Bahiano, 35 anos - morto pela Polícia Militar -, quer entender o que aconteceu ao lutador depois que ele saiu de casa, em São Caetano, com destino ao próprio Centro de Treinamento, no mesmo bairro, na manhã de quarta-feira (28) - dia em que a Secretaria da Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) afirma que o atleta, acompanhado de outro homem, em um carro roubado, reagiu a uma abordagem policial.

Víuva de Irailson, a também mestre de jiu-jítsu Marta Helena Villas Boas, 40, rebate a afirmação da SSP-BA de que o atleta, e um suspeito - que também morreu -, roubaram um veículo modelo HB20, placa OLB 3146, na manhã de terça-feira (27), na região da Aquidabã, no Centro de Salvador. "Meu marido saiu de casa às 11h [ dia 28] e não voltou. Quero ver as marcas dos tiros no carro, quero ver de perto. Saber quem é esse homem, porque eu não conheço, não sei quem é", salientou.Segundo a SSP-BA, Irailson trocou tiros com militares das Rondas Especiais (Rondesp/BTS), na região do Terminal da França, no bairro do Comércio. A pasta não informou, no entanto, o horário em que o confronto teria ocorrido. "Eu só quero que eles provem. Eu quero as provas de que meu marido estava roubando"."Ele saiu pra treinar, às 11h, e nunca mais voltou. Ele não saiu pra roubar, não. Eu quero saber a hora em que ele foi morto. Porque ele saiu de casa a pé e sozinho, como costumava fazer", afirmou a víuva ao CORREIO, acrescentando que vai à Corregedoria da corporação registrar o que ela chama de "assassinato cruel".  Corpo do mestre foi velado e enterrado na tarde de ontem no Cemitério do Campo Santo (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) A esposa garante que às 7h do dia 27 [horário da ocorrência de roubo], Sinho estava em casa, dormindo. Marta também afirmou à reportagem que desconhece afirmação de que o marido sabia manusear armas - já que, segundo a SSP-BA, a dupla morta estava sob posse de dois revólveres calibre 38. A pasta afirma que o dono do carro roubado prestou queixa no mesmo dia. Não há a informação de que a vítima tenha reconhecido Sinho como autor do crime.

O atleta foi enterrado sob forte comoção, na tarde desta segunda-feira (3), no Cemitério Campo Santo, na Federação. Pai de um adolescente de 12 anos, o mestre costumava, de acordo com Marta, estar sempre acompanhado da família. Por este motivo, segundo ela, "não dá pra entender como ele foi parar no Comércio, com um homem desconhecido e duas armas"."Ele foi levado para lá. Meu marido era um homem tranquilo por natureza. Que ia de casa para o Açaí [lanchonete de propriedade do lutador], ou pra casa mãe, tudo pertinho. Ele tinha moto, vendemos o carro recentemente", reiterou, sem ideia da procedência do HB20. Questionamentos Antes de encontrar o corpo do atleta, já no domingo (2), no Instituto Médico Legal Nina Rodrigues (IMLNR), a víuva comentou que chegou a cogitar que o marido pudesse estar com uma amante. "Foi o que pensei, quando as horas foram passando e ele não deu sinal. Como ele não tinha levado celular, não era ligado a isso na hora dos treinos, eu pensei logo: 'é mulher'. Antes fosse, mas não", disse ao CORREIO.

Após cinco dias de buscas nos maiores hospitais da cidade - Marta decidiu ir até o IMLNR, onde encontrou o cadáver do marido, segundo ela, sem marcas de tiros e com um "afundamento de crânio". "São muitas questões. Como meu marido trocou tiros, foi morto, e não foi baleado? Outra coisa, ele estava com a habilitação no bolso, como ele deu entrada como indigente? Ele tinha lesão muito profunda na cabeça. Eu acompanhei tudo, desde o IML até o sepultamento", garantiu, acrescentando que o lutador não deu entrada no Hospital Ernesto Simões Filho, no Largo do Tamarineiro, como afirma a nota da SSP-BA. Procurado pela reportagem, o Departamento de Polícia Técnica (DPT) disse, por meio da assessoria, que não poderia fornecer informações acerca da causa da morte, preliminarmente indicada em um laudo cadavérico. De acordo com o DPT, o homem morto ainda aguarda por identificação. A Secretaria de Saúde do Estado (Sesab) também foi questionada quanto à entrada de Sinho no Ernesto Simões Filho, mas informou, também pela assessoria, que "não fornece informações de pacientes", nem mesmo registro de datas das unidades de saúde.

A esposa da vítima voltou a comentar sobre uma ligação que recebeu de um representante da SSP-BA, que ela não soube identificar, nesta segunda-feira, questionando se ela tinha alguma informações sobre a morte de Irailson. Segundo Marta, a própria pasta disse que nenhuma ocorrência havia sido registrada na região onde o caso foi registrado.

"Eles me disseram que meu marido também não tinha dado entrada em hospitais, mas depois disseram que socorreram. Simplesmente deram um posicionamento hoje porque a imprensa foi atrás. Acharam que Sinho era à toa, na certa", destacou a viúva.

'Vida certinha' Dono de um Centro de Treinamento localizado dentro da academia New Fitness, em São Caetano, Sinho dava aula para adultos e crianças, incluindo o filho de 12 anos. Ainda de acordo com a mulher, ele dividia a rotina entre as aulas de jiu-jítsu e a gestão de uma lanchonete inaugurada em julho deste ano. 

O casal, que morou por 11 anos no bairro da Federação, havia se mudado recentemente para São Caetano, para que o professor ficasse próximo do trabalho."Ele tinha uma rotina muito certinha, era o nosso açaí [lanchonete], academia, casa. Ele também ia pra casa da mãe. Geralmente, treinava até pouco antes do meio-dia. Depois me encontrava na lanchonete, que eu abria às 13h. Não saía sem dizer pra onde", lembrou Marta.A atleta contou que, por também praticar esportes, ela o marido costumavam fazer tudo juntos. "Eu conheci Sinho em um campeonato. A gente era unido em tudo. Nós demos muito duro pra ter as coisas. Quando morávamos na Federação, ele ensinou no Calabar, porque gostava demais e acreditava nas crianças, dava oportunidade a elas".

Para ela, imaginar que o homem com o qual dividiu a vida por quase duas década saiu para roubar "é impossível". Da última vez que foi visto com vida, como de costume, Sinho apenas se despediu com um: "Tô indo". "Nada de especial, se despediu como sempre, só não sabia que era a última vez", lamentou a viúva

Comoção Ao menos 300 pessoas, entre familiares, alunos e colegas de profissão participaram do sepultamento de Sinho, na tarde de segunda-feira (3), no Cemitério Campo Santo, na Federação.

Chorando muito, o filho da vítima participou do velório e também do cortejo fúnebre do pai. O adolescente permaneceu abraçado a outro garoto a maior parte do tempo, acompanhado de outros familiares, além da mãe, Marta Villas Boas. Segundo a viúva, o filho foi informado de toda situação. "Ele também quer saber o que, de fato, aconteceu".

Professor de jiu-jítsu há mais de 15 anos, Sinho era querido não só entre os alunos, mas também pelos pais deles. A recepcionista Daiana Santana, 35, comentou que criou uma relação de amizade com o mestre do filho de 9 anos."Coloquei meu filho nas aulas em um momento em que ele estava mal na escola, sem disciplina, e tudo melhorou depois dos treinos, inclusive as notas. Ele ficou na academia por um ano e quando eu tirei, Sinho sempre me pedia pra eu levar ele [o filho] de volta", disse, emocionada, logo após o enterro.Daiana é uma das pessoas que também não acreditam que o mestre estava a bordo de um carro roubado. "É um absurdo, isso não faz sentido nenhum para quem conhecia ele o mínimo que fosse. Um rapaz maravilhoso, de alma caridosa", completou.

O lutador atualmente era monitor do projeto social Luta Cidadã, que funcionava dentro da Base Comunitária da Polícia Militar em São Caetano. 

Amigo de infância, o gerente comercial Davi Almeida, 26, comentou que nunca soube de qualquer "coisa ruim" envolvendo o atleta. "Muito pelo contrário, um homem muito trabalhador, pai de família comprometido e que tinha amor pelo esporte e pelos alunos", disse ao CORREIO.

A família e os amigos falaram ao CORREIO que desconhecem o processo judicial arquivado contra o atleta em 2013. Dois anos antes, ele havia sido detido por policiais militares com quatro pedras de crack ao lado do Cemitério do Campo Santo. O Ministério Público do Estado da Bahia pediu arquivamento por entender que não era crime - a quantidade seria para consumo próprio e não repercutia no coletivo. Além deste caso, o nome de Sinho consta em outra ação judicial relacionada a uma briga familiar.

Campeão brasileiro Sinho Baiano começou a lutar jiu-jítsu aos 13 anos. Aos 21, participou do primeiro campeonato vale-tudo. A família – incluindo a esposa, com quem estava há 15 anos, e o filho de 12 anos – praticavam juntos o esporte.

Entre os principais resultados do atleta, estão o tricampeonato baiano estadual na modalidade, o 3º Lugar na Copa do Mundo de Jiu-Jítsu, em 2010, e o 1º lugar em peso e absoluto da 2ª Etapa do Campeonato Mundial, em 2015, em Buenos Aires. Este ano, Sinho também foi vice-campeão do Floripa Fall International Open Jiu-Jítsu, em Florianópolis.

À reportagem, Marta contou que a próxima viagem internacional de Sinho aconteceria em janeiro, onde ia participar, em Portugal, do Black Belt Challenge - campeonato em que já havia sido campeão em 2017.