Meu Bonfim: 'Rapaz, não existe o cara ser casado na Bahia!'

Alexandre Lyrio fala sobre os calores, colírios e cachaças durante a lavagem

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 11 de janeiro de 2018 às 23:34

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Evandro Veiga/CORREIO

Acordei e o céu estava preto. Como assim? Bonfim é calor! Confuso com esse verão dos trópicos, foquei na missão: fazer um relato pessoal sobre a minha lavagem. “Hum, ai ai”, pensei. Primeiro porque meus Bonfins costumam ser muito mais profanos do que sagrados. Segundo porque, com a quantidade de amigos que costumo encontrar na festa, se realmente fosse viver meu Bonfim, não chegaria tão cedo na Colina e, consequentemente, no jornal.

Começou na Avenida Contorno. Primeiro, Raquel. Depois, Rovena. O “cacau” parecia que ia cair com força. Cheguei na Conceição e, antes do cortejo sair, rolou um rápido chuvisco. Pronto, parou por aí. Para manter a tradição, ainda que sem sol, Senhor do Bonfim mandou Pedro fechar as torneiras e ligar a estufa. Um mormaço dos infernos subia do asfalto. Mas, a cada amigo que aparecia, parecia ser o mais agradável mormaço do mundo. 

Como sempre, mantive distância do ato ecumênico. Pego só a rebarba da fé dos outros. Sou mais da trupe dos administradores Alex Brandão, 39 anos, e Luciana Farias, 43. Enquanto, por volta de 8h30, as autoridades e os religiosos começaram a disputar microfone, eles já batiam a terceira gelada. “Só Senhor do Bonfim sabe se a gente chega lá”. Eu, por outro lado, estava ali a trabalho.   

Mas, sou testemunha, no Bonfim a sede revela-se mais cedo na garganta. Ainda mais naquela cuscuzeira de gente, fé e molequeira. Diante de tanta quentura, só me restava uma opção. Seguir para a sombra do Comércio, ao encontro de Mateus, Aline e companhia limitada, que a essa altura trituravam os sanduíches de pernil no Manolo. Antes, porém, me bati com o grande dr. Rafson. Quanto tempo! 

Esse, aliás, jamais me levaria para o “mau” caminho. Mas tem amigo que é uma porra! Chego no Manolo argumentando que estava de serviço. Nada de bebida! É quando Carybé me apresenta uma puro malte canela de pedreiro. Alex Rolim, esse só vejo de Bonfim em Bonfim, emendou com aquela cara de cachaça dele: “Nada, pai. Bonfim é diferente!”. 

Bonfim é diferente. Mas eu nuca tinha vivido um Bonfim em estado de calefação. No Colon, Duplat, o Paiakan, deu o tiro que ele imaginou ser o de misericórdia. “Colé, irmão! Tomar uma só vai melhorar o seu trabalho”, disse, estendendo o copo de chope. “O chefe não pediu para você escrever sobre o seu Bonfim? Então...”. Verdade, Índio.

O meu Bonfim é o Bonfim de Alberto de Jesus, 44 anos, conhecido no Retiro como Rui Baleia. Pegou com jeito uma feijuba logo de saída no Bar do Soneca. “Daqui a pouco tomo a primeira”, disse, sem saber que eu esturricava de sede.

Mais de 100 kg de pança, Baleia fazia o cimento com farinha misturada ao molho Lambão. Ê, lasqueira! “Assim você não chega na Colina, Baleia!”. “Oxe, se precisar vou e volto!”, garantiu, suando por todos os poros.

Outros tantos amigos, molhados pela transpiração, foram aparecendo. Jamile, James Martins (vi de longe), Luana Rocha (aniversariante), Ivanzinho. Franciel à caráter. Brisa e seu sorriso eterno. Juliana Kalid, Michele simpatissíssima mandou beijo, Rodriguinho me pegou por trás (lá ele), Ed, Carol maluquinha, Felipeta e Manuca. Procurei Victor Xumi, Herbem e Flávio Novaes na altura do Mercado do Ouro. Deviam estar perdidos.  Quem disse que Lula não foi? Virou alvo de protesto no cortejo (Foto: Alexandre Lyrio/CORREIO) Bonfim é diferente. Ainda mais um Bonfim que faz você virar líquido. Vi, porém, as manifestações de sempre. Inclusive as políticas. Só que, dessa vez, ainda mais extremas. Claro, tudo na mais perfeita harmonia dessa Bahia quente e úmida de meu Deus.

Vi desde os Filhos de Marx apoiando Cuba e Venezuela até Lula preso antes mesmo da sentença. Vi o “superfantástico” microtrio [Rixô Elétrico] andando devagar, tocando de Balão Mágico a Realce. Todo mundo junto na mesma temperatura! Filhos de Gandhy? Não. Filhos de Marx na lavagem (Foto: Alexandre Lyrio/CORREIO) Na frente do muro da Marinha, vi a faixa da Feijoada do Robson, “irmão de Germano do Olodum”. Vi Vanessa carequinha. Vi Joana Giron e Karla do Bagacinho. Vi um carrinho de cafezinho fazer miséria com bateria eletrônica e outros instrumentos acoplados. Nos Dendezeiros, vi o Gandhy lembrando para gente que na mata quem manda é Oxóssi. No meio do trabalho, vi um certo alguém surgir e me dar um beijo na boca. O calor subiu na hora!

Por um instante, lembrei que estava trabalhando e abri o gás. O jornal não poderia esperar pelo meu Bonfim. Dei aquela adiantada de lei pelas ruas de dentro. Antes de subir a Colina Sagrada, repus as energias com um xinxim de bofe das irmãs Taís e Keivelin. Mais suor. Reclamei do mormaço e Bruno, que sempre chamei de Fio de Lídice, me repreendeu. “Melhor do que sol a pino”. Para um homem de pouca fé, até que cumpri bem a tradição de amarrar a fitinha no gradil da basílica. 

Dos três pedidos, só vou entregar um: que em 2018 surjam outras pautas como essa. Isso porque o “meu Bonfim” é o Bonfim de Galdea, que encontrei na baixada daquele bairro. “Rapaz, não existe o cara ser casado na Bahia!”, teria dito ele, o bem comportado mais descarado do Rio Vermelho. Largou essa logo para mim, que acabou de se juntar. Amigo é uma porra. Pelo menos esse não ofereceu uma cerveja. Será?