Meu Bonfim: 'Vi e ouvi tudo que queria e que não queria'

Em meio à fascinação com a lavagem, repórter relata assédio e racismo

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  • Thais Borges

Publicado em 11 de janeiro de 2018 às 21:00

- Atualizado há um ano

“Você gosta do Bonfim?”, me perguntava o motorista Luciano Santana, por volta de 7h, nesta quinta-feira (11), antes mesmo de chegarmos à Conceição da Praia. Com esse questionamento, percebi uma coisa: eu, repórter da editoria de Cidade do CORREIO há seis anos, não podia dizer se gostava ou não da Lavagem do Bonfim, minha pauta do dia. Eu realmente não sabia.

Não me entendam mal – já tinha estado lá. Mais de uma vez, inclusive. Meus pés não esquecem a sensação depois de 8 km de caminhada. No entanto, sempre estive nessa que é considerada a maior festa religiosa dos baianos para acompanhar a parte política. Ficava completamente absorta na minha missão. 

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Resultado? Nunca consegui enxergar o restante da festa. Não conseguia ver a estrela – o Senhor do Bonfim – nem os convidados da lavagem (o povo). Mas este ano, minha missão foi outra. Este ano, posso dizer que fui ao Bonfim de verdade. E embora eu estivesse no mesmo lugar das outras vezes, foi uma experiência completamente diferente. Dessa vez, vi e ouvi de tudo: o que queria e o que não queria.

Preciso dizer que não sou católica. Ainda assim, quando avistei o andor do Senhor do Bonfim decorado com milhares de fitinhas de fiéis, fiquei arrepiada. Não pela minha fé, mas por sentir a fé dos outros. Era algo tão concreto no ar que quase conseguia tocar. Este ano, o andor do Senhor do Bonfim foi decorado com fitinhas com pedidos dos fiéis (Foto: Marina Silva/CORREIO) Quem me trouxe de volta à realidade foi dona Edith Souza, que passou por mim vestida de verde e amarelo dos pés à cabeça, aos 89 anos. Enquanto a maioria usava branco, dona Edith desfilava com uma roupa costurada por ela mesma com flores e estrelas bordadas. Nos lábios, um batom verde de deixar qualquer novinha com inveja – inclusive eu. Quando a abordei, ela teve uma reação inesperada.  Dona Edith desfilava assim em meio à multidão vestindo branco (Foto: Thais Borges/CORREIO) “De novo, CORREIO? O povo lá no jornal nem deve mais aguentar ver minha cara”, dizia, aos risos. Só então entendi. Certamente, dona Edith tinha chamado a atenção de algum colega meu em outro ano, como fez comigo. Mas, se para ela receber olhares era comum, para mim, me deparar com aquele visual era pura novidade. Pedi, então, que ela explicasse, para alguém que nunca tinha ido ao Bonfim, o que aquela cerimônia tinha de especial. 

Não disse nada na hora, mas aquele ‘alguém’ em questão era eu, desesperada para extrair o máximo que podia. Por isso, escutei atentamente quando ela contou que vivia em São Paulo e, há 14 anos, conheceu a lavagem. Se encantou pela festa. “Vi essa coisa bonita e me apaixonei. Eu venho porque a gente precisa agradecer, todo ano pelas graças que estamos alcançando, sabe?”. Depois da nossa conversa, ela me deu a dica: comprou o batom na Rua 25 de Março, lá mesmo, na capital paulista. Anotei mentalmente para minha próxima viagem e segui andando. 

É axé Antes de sair da Conceição da Praia, conheci a baiana Ana Zilda Oliveira, 40, que borrifou um líquido em mim. “É axé”, me explicou. Perguntei se era a Água de Oxalá, sobre a qual tinha aprendido recentemente. Não era – essa estava bem guardada na moringa que ela carregava, para ser despejada somente nas escadarias da Igreja do Bonfim. Era alfazema mesmo. Aceitei o presente e parei para ouvir mais de sua história. 

Desde os sete anos, ela sai como baiana. A tradição era sair sempre com a avó, que já tem mais de 90 anos. Hoje, a antecessora não consegue mais fazer o percurso, mas esperava pela neta no Bonfim. A lavagem de Ana Zilda me ganhou: era realmente uma coisa em família. “No meio do caminho, devo ver minha irmã vendendo feijão na feira (de São Joaquim). Meu esposo também está lá, vendendo folhas. Esse ano, tive um princípio de câncer e vim agradecer por estar curada”, revelou. Com a benção dela, segui em frente. 

Em meio aos blocos de políticos que passavam, o vendedor ambulante Antônio Carlos, 41, reunia doleiras para expor. Me disse que até aquele horário, por volta de 9h30, os negócios não iam bem. Só tinha vendido seis exemplares por R$ 5 cada. Porém, as expectativas eram altíssimas. Acreditava que, até o fim do dia, iam decolar. Ao fim de nossa conversa, ele me deu uma dica: dá para curtir e trabalhar. Será mesmo?

Desde os 14 anos, Antônio Carlos está na labuta nessa festa. Mesmo assim, arranja tempo para os amigos. “O bom é que é uma festa calma. Não é como quando tinham os trios, que tinha briga, era violento. Daqui a pouco eu tomo uma cervejinha e fico até umas 4h, 5h”, contou, mostrando que tinha bem mais disposição do que eu. 

Perto da Associação Comercial da Bahia, descobri um grupo que dizia ter encontrado a feijoada que mais valia a pena em todo o percurso. Por R$ 20, compraram um pratão de barro que alimentava seis pessoas. “Foi pouquinho, mas lá na frente a gente come de novo. Hoje, a gente não tem hora para chegar em casa”, disse a pensionista Julieta Mota, 71. 

Mais à frente – não sei se tão à frente quanto o grupo pretendia – encontrei outra galera que dizia estar provando a melhor feijoada do cortejo. Essa era o dobro do preço, mas pareciam satisfeitos. Gostavam tanto que virou ponto fixo do grupo de turistas mineiros que vêm, há 20 anos, para o Bonfim. A empresária Ana Lúcia Constantino, 50, tentou me explicar como a tradição surgiu. “Um amigo nos apresentou. Ele faleceu em 2016, mas continuamos. Eu venho pela fé, que é uma coisa tão forte que nunca vi em nenhum lugar do mundo”.  Os turistas de Minas Gerais garantiram ter encontrado a melhor feijoada do percurso (Foto: Thais Borges/CORREIO) Já perto da Calçada, comecei a encontrar os tais personagens curiosos – esses que sempre são fotografados, mas que eu nunca entendia de onde saíam. Primeiro, foi o pescador Regivaldo Marcos, 42. Não tinha como não olhar para ele: vestido de xadrez, Regivaldo carregava um pão de quase dois metros de altura. Sim, um pão, ainda que feito de isopor.  Regivaldo levou um pão gigante para protestar (Foto: Thais Borges/CORREIO) O que significava aquilo? Era um protesto, ué, me respondeu. Mas pelo quê? “Os políticos de hoje não cumprem os compromissos com os brasileiros, não dividem o pão com os baianos”, explicou, enquanto me mostrava o utensílio que a esposa levou dois dias para fazer. Achei a justificativa interessante, mas me preocupei com o peso. Não incomodava? Não, era leve, ele me tranquilizava. Acho que pareci duvidar, porque ele me entregou o troço para segurar. Não era pesado, mas não me imaginaria carregando aquilo por oito quilômetros. 

Encontrei também o encanador Jonelson Sacramento, 67, que se veste de pierrô há 35 anos. Pessoas faziam fila para tirar fotos com ele, todo vestido de preto e laranja. Eu só conseguia pensar numa coisa: como ele aguentava todo aquela quentura, com tanta roupa? Aquelas nuvens escuras no céu estavam ali apenas para fazer figuração - estava tão quente que não ouso chutar a temperatura registrada. Pedi que ele revelasse seu segredo para a novata aqui e ele cedeu. “Na hora que o calor aperta, a gente toma duas cervejinhas e não sente mais nada. Num instante, o calor abaixa”.  Nem o calor fez o pierrô Jonelson desanimar (Foto: Thais Borges/CORREIO) O que não queria Mas foi na Calçada que vi e ouvi o que não queria. Quando encostei em um muro para descansar e beber água, fui puxada por um homem. Ele segurava meu braço e falava algo impossível de escutar, mas perfeitamente compreensível. Pela primeira vez, no Bonfim, me vi diante de uma situação que sempre achei que estava protegida pelo uso do crachá com a insígnia de jornalista: estava sendo assediada enquanto trabalhava. 

Quando o cara me puxava forte, dei um tapa em sua mão e tentei murmurar algo. Nada saía. Ele foi embora reclamando – vestido uma camisa de partido que não vem ao caso – e meu coração acelerou. Sabe que sensação é essa? De impotência, de medo. De me sentir culpada porque não fiz um escândalo – afinal, a Polícia Militar estava logo ali. Meu Bonfim, que até então era de novidades e sorrisos, virou um choro silencioso. 

Por alguns minutos, fiquei atordoada. Achava que todo homem que passava por mim era o que me puxava. Poderia parecer mentira, se o que tivesse me trazido de volta não fosse tão incômodo quanto. Foi quando eu passava por um edifício com pelo menos 15 varandas servindo de camarote. Todos que observavam – e dançavam, balançavam bandeiras e acenavam felizes – eram negros. 

Foi quando ouvi: “Que favela da porra”, vindo de dois homens brancos encostados em uma barraquinha de comida. Com camisas e óculos de grife, eles desprezavam o grupo que se divertia nos camarotes improvisados. Fiquei ainda mais triste. Mas pensei: o que é o Bonfim, se não a sociedade toda junta? E a sociedade é bem massa quando quer, mas também tem uma parte racista, homofóbica e, principalmente, machista.  Viviane e Antônia Conceição, mãe e filha, saíram de roupas combinando (Foto: Thais Borges/CORREIO) O que guardo? Continuei minha caminhada. Encontrei gente com a mãe Antônia e a filha Viviane Conceição que vestiam roupas iguais para mostrar a sintonia. Gente como o grupo de 40 baianos e paulistas que criaram o bloquinho Toda Menina Baiana (com a proposital sigla ‘Tomba’) para se divertir porque a vida é uma festa e o Bonfim não pode fugir disso. O bloco Toda Menina Baiana ('Tomba') saiu pela segunda vez com 40 amigos (Foto: Thais Borges/CORREIO) É isso que pretendo guardar de hoje. Isso e a imagem dos assistidos pelo Centro de Atendimento Psicossocial (Caps) que faziam uma festa particular, enquanto viam o cortejo passar. Para eles, o Bonfim significava inclusão social. Significava que poderiam usufruir daquela folia toda e que a recuperação passa longe de internamento em manicômios.  Sônia e Elisleide curtiam a festa do Caps e comemoravam a inclusão social do Bonfim (Foto: Thais Borges/CORREIO) Quero ficar também com as lembranças do som que mudava a cada 10 passos. A cada vez que andava, parecia que eu transitava entre uma convivência harmoniosa e inusitada de samba, batuques, marchinhas antigas e as músicas católicas que embalavam o andor do Senhor do Bonfim. É esse Carnaval das antigas – e de gente das antigas – que quero guardar. 

Gente como a matemática aposentada Léa Azevedo, 67, que dançava ao som das bandinhas como se não houvesse amanhã. Como eu, ela estava sozinha. Como eu, ela tinha sua própria estreia: era a primeira vez que conseguia ver a festa do início, desde a concentração na Conceição da Praia. “Tomei mugunzá para dar energia e ir até o final”, me disse, em tom de segredo.  

Ela não sabe, mas me deu uma lição hoje. Me ensinou a curtir mais sem se importar com os olhares de reprovação. Ela nem imagina, mas junto com esse monte de gente legal – também conhecida como a parte que eu queria ter visto e ouvido – fizeram meu Bonfim valer a pena. Da próxima vez que me perguntarem o que acho da Lavagem do Bonfim, já sei qual será a resposta.