Micheliny Verunschk: ‘Sem a arte, o mundo humano é absolutamente inviável’

Expoente da literatura nacional, autora pernambucana aborda a violência da cultura colonial do Brasil em seu novo livro, O Som do Rugido da Onça

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  • Kátia Borges

Publicado em 27 de junho de 2021 às 07:21

- Atualizado há um ano

. Crédito: Renato Parada/divulgação

Pernambucana radicada em São Paulo, Micheliny Verunschk é uma historiadora, poeta e escritora brasileira que fez sua estreia na literatura aos 31 anos com o livro de poemas Geografia Íntima do Deserto (Landy Editora, 2003), finalista do Prêmio Portugal Telecom (atual Oceanos). Seu primeiro romance, Nossa Teresa - Vida e Morte de Uma Santa Suicida (Editora Patuá, 2014), venceu o São Paulo de Literatura 2015 e foi finalista ao Prêmio Rio no mesmo ano.

Alternando-se entre a prosa e a poesia com constância, lançou em 2020 o belo O Movimento dos Pássaros, pela editora Martelo, e chega a 2021 com O Som do Rugido da Onça, romance editado pela Companhia das Letras, que narra, do ponto de vista dos povos originários, a saga das crianças que ficaram conhecidas historicamente apenas como Miranha e Juri, suas etnias, sequestradas durante a célebre passagem dos naturalistas bávaros Spix e Martius ao nosso país, entre 1818 e 1821.

Nessa entrevista, exclusiva para o CORREIO, Micheliny fala sobre o seu processo criativo, a conexão entre história e literatura e os projetos aos quais se dedica nesse momento.

Penso que toda arte se processa a partir de conexões aparentemente dispersas, como descreve Patti Smith em Devoção. Então imagino que outros elementos se juntaram à contemplação das litografias de Juri e Miranha na exposição que você visitou em 2016 (ano bastante simbólico). Além da perplexidade diante da história das crianças indígenas sequestradas, quais outros espantos levaram à criação de O Som do Rugido da Onça?

Gosto imensamente da “genealogia” que Patti Smith faz na composição de Devoção, um palimpsesto de coisas aparentemente banais mas que ganham outra fulguração depois que lemos o pequeno conto dele derivado. Em O Som do Rugido da Onça há algumas das quais lembro que talvez possam responder a essa pergunta: um conjunto de fotografias de animais antropomórficos que resultaram em duas séries de poemas chamados ‘euanimal e isso de ser moça-onça’ (em parceria com o escritor Wilson Freire); um episódio no metrô da linha verde de São Paulo em que vi uma moça com uma bolsa com cara de onça e que os olhos de strass pareciam me fitar durante toda a viagem e que resultou num sonho com ares psicodélicos alguns dias depois, no qual esses olhos brilhantes tinham o poder de hipnotizar; e a minha primeira experiência com a Ayahuasca, na qual pedi ao chá que me mostrasse a relação que eu poderia ter com a narradora desse livro. A isso se juntam alguns passeios selvagens no bairro do Sumaré, em São Paulo, onde suas nascentes, pancs e grafites pareciam me transportar para um cenário menos urbano, como se a qualidade insubordinada da natureza pudesse estar apenas encoberta.

As protagonistas, Iñe-e e Josefa, vivendo em séculos diferentes, experimentam de algum modo um mesmo processo de silenciamento. Uma delas, embora rendida, eterniza-se em imagem historicamente sem voz, enquanto a outra resiste no enfrentamento e no autoexílio. O que a levou a optar por uma narração que se movimenta no tempo e por um narrador participativo, que pensa sobre a história enquanto a narra? Como se deram essas escolhas?

O meu trabalho com a narrativa ficcional vem, desde o primeiro romance, Nossa Teresa - Vida e Morte de Uma Santa Suicida (Patuá, 2014), lidando com esse tempo não-linear, um movimento de vaivém que reflete uma crença pessoal no tempo como uma categoria fluida e não estanque, o tempo em dobras que se comunicam, que não se adequa à ideia de um tempo em linha reta. Essa ideia de um tempo em que passado, presente e futuro estão em permanente fricção tem a ver também com uma ideia de confronto que move os sujeitos históricos. São esses sujeitos em confronto que, de uma forma geral, narram as histórias contadas nos meus romances. Em O Som do Rugido da Onça, o trabalho com essas instâncias temporais e esses narradores participativos é aprofundado.

O Som do Rugido da Onça já foi definido como uma “cosmovisão indígena”. Em que medida esta é uma definição coerente com seu projeto literário?

O Som do Rugido da Onça é um trabalho de fabulação em torno de diversos materiais, desde o material histórico clássico, passando por narrativas e cosmovisões indígenas, além do próprio cimento das referências literárias e do contributo imaginativo. É uma narrativa de ficção em torno do fato de que duas crianças dos povos Miranha e Juri foram levadas pelos cientistas Spix e Martius para a Alemanha e que lá sobreviveram por pouquíssimo tempo. É apenas um modo de contar essa história. Não pode ser definida como uma cosmovisão indígena, embora seja atravessado por ela, porque não sabemos como os indígenas contaram, contam ou contarão essa história ou histórias como essa.

Fala-se muito em lugar de fala na literatura. Escrevendo este romance do ponto de vista dos povos originários, acredita que a narrativa possa suscitar algum questionamento nesse sentido? O que pensa pessoalmente em relação ao lugar de fala em literatura?

Acredito que a literatura é o lugar, por excelência, do exercício da alteridade. A ficção tem o poder de nos colocar no lugar do outro de uma maneira radical. Entretanto, há limites. Não na ficção, mas fora dela. E fora dela há, no meu caso, uma autora que não se torna indígena por escrever sobre temas indígenas, e que, embora politicamente caminhe ao lado dos indígenas nas lutas por seus direitos, não se torna porta-voz deles. Os limites do lugar de fala são, a meu ver, extraliterários. Os jovens indígenas Miranha e Juri, levados de suas tribos como curiosidades por naturalistas europeus no início do século 19 (reprodução) Pessoalmente, considerei dolorosa a leitura de O Som do Rugido da Onça, por nos colocar numa posição de impotência com qual temos lidado bem de perto nos últimos tempos. Ao concluir a leitura, no entanto, veio a sensação de compreensão do seu título. A onça imaginária que faz ecoar seu rugido em memória de Iñe-e e em sua proteção. Qual é, afinal, a função da literatura na contemporaneidade, em um mundo cindido e cada vez mais brutal?

A literatura não nos salvará, porque não é essa a sua função, mas, como toda a arte, pode nos dotar da capacidade de reconstruir pontes, elos nesse mundo em permanente dissolução. Sem a arte, o mundo humano é absolutamente inviável.

Em seus livros, especialmente no premiado Nossa Teresa: Vida e Morte de Uma Santa Suicida (São Paulo de Literatura 2014), e neste O Som do Rugido da Onça, é possível perceber a força da narrativa ancorada na pesquisa histórica. Quanto da historiadora reside na escritora e vice-versa?

Sou uma pesquisadora obsessiva e em grande medida apaixonada pelas fontes. Acredito que historiador e ficcionista são atividades afins. Não iguais, mas muito próximas. A história, sobretudo a história dos vencedores, é extremamente tributária da ficção. Um exemplo do próprio material que fundamenta O Som do Rugido da Onça: em todas as anotações científicas feitas por Martius, a exatidão é um atributo perseguido. Seja nas observações botânicas ou de natureza cultural. Entretanto, todas as informações referentes ao rapto das crianças são rasuradas. Isso denota uma clara intenção de interferência nos fatos. Todas as rasuras de Martius são desvios ficcionais que ele usa, no meu entendimento, ou para aplacar a própria consciência ou para desnortear os pesquisadores do futuro.

Li em algum lugar que a prosa chegou primeiro em sua vida, muito embora a estreia com Geografia Íntima do Deserto (2003), com excelente recepção crítica, e os recentes Maravilhas Banais (2017) e O Movimento dos Pássaros (2020), ambos pela editora Martelo, tragam poemas. Quando e por que sentiu que finalmente era o momento de se dedicar à prosa com Nossa Teresa?

O Geografia Íntima do Deserto foi publicado quando eu tinha 31 anos e é o meu livro da adolescência, no sentido de que boa parte dele foi escrito a partir dos 17, 18 anos em diante, numa época em que eu estava começando a compreender os meus processos de escrita e crítica e minha relação com a literatura. Embora eu tenha começado a escrever cronologicamente primeiro a prosa, o processo de aprendizagem dos caminhos da narrativa foi mais longo. Eu exercitava formas curtas e tentava compreender o que tornava uma narrativa fluida, agradável, crível etc. Quando comecei Nossa Teresa logo percebi que a história não caberia em um conto. A dinâmica da história pedia isso e foi ela quem determinou o “fôlego” que deveria ter. Nossa Teresa me ensinou como eu deveria escrever sua narrativa. O Som do Rugido da Onça, de Micheliny Verunschk Retomando a poesia, em O Movimento dos Pássaros, percebemos uma temática que perpassa todos os poemas: a migração. Nunca vivemos um período com tantas ondas migratórias ao redor do planeta, e ao mesmo tempo, com tanta violência e rejeição àqueles que migram. Esse foi, para você, no caso específico deste livro, uma espécie de gatilho poético?

O gatilho poético desse livro foi estar diante da dor do outro ao me deparar, em 2015, com a fotografia de Aylan Kurdi, menino sírio-curdo de três anos que morreu afogado junto ao irmão numa praia da Grécia depois do naufrágio do navio de refugiados em que sua família estava. Esta fotografia, penso, inaugura de fato o século XXI e às vezes imagino como o historiador Eric Hobsbawn denominaria esta era. Talvez a Era das Dissoluções? Nesse exercício de imaginação penso que ele concordaria comigo de que a fotografia do pequeno Aylan Kurdi é uma triste fulguração dessa época.

“O Papel suporta tudo (...) as letras são animais que, depois de domesticados, apenas obedecem”. Há grande lirismo em O Som do Rugido da Onça, destacado inclusive por Itamar Vieira Junior na quarta capa. Como a Micheliny escritora lida com a domesticação desses animais, palavras?

Drummond dizia que essa é a luta mais vã. Eu, concordando e desmentindo o pensamento da personagem de O Som do Rugido da Onça, respondo, em coro: Entanto lutamos, mal rompe a manhã. Só as palavras em estado de burocracia são domesticáveis, mas até aí elas podem se rebelar como bem provou o prefeito Graciliano Ramos em seus relatários. Lutar com palavras é na mesma medida extenuante e gratificante. Especialmente porque estão em permanente estado de infância.

O seu novo romance foi inserido, em uma das muitas resenhas que li sobre ele, numa vertente contemporânea da literatura brasileira que se volta para a compreensão do Brasil, ao lado de Itamar, Socorro Acioli e outros autores. Você se sente parte dessa vertente? Pensa que sua literatura, de fato, enquadra-se nessa tendência e que ela é uma realidade hoje perceptível?

Tenho um projeto literário com a minha prosa que ainda está em pleno curso e este projeto, que se inicia com Nossa Teresa, trata de refletir sobre o que nos forma como nação. Em Nossa Teresa está a violência do cristianismo católico, nos volumes da Trilogia Infernal estão a violência no campo e a violência institucional da Ditadura Militar e em O Som do Rugido da Onça está a violência da empresa colonial. Devo retomar esses temas em certa medida nos próximos romances, onde penso refletir sobre os intricados caminhos da violência patriarcal, da ascensão miliciana e do pensamento religioso que os ampara. Espero em breve conseguir concluir esse plano.