Militância e sabedoria atrás das grades

Livro com mais de 200 cartas inéditas resgata correspondência de Nelson Mandela e mostra sua rotina nos 27 anos em que esteve preso

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  • Doris Miranda

Publicado em 1 de setembro de 2018 às 06:00

- Atualizado há um ano

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Mais do que um precioso documento histórico, o livro Cartas da Prisão de Nelson Mandela (editora Todavia/R$ 85), lançado como um dos marcos pelo centenário do líder sul-africano, comemorado em 18 de julho, é um grande conjunto de ensinamentos. De vida, moral, resiliência,  idealismo e, sobretudo, de autoconhecimento. Prisioneiro político, opositor número um do regime brutal do apartheid, Nelson Mandela  (1918-2013) se mostra um ser humano cheio de facetas através de mais de 200 cartas inéditas, descobertas ao longo de uma década nos arquivos das cadeias onde  passou 27 anos confinado.

Esta seleção, coordenada pela jornalista sul-africana Sahm Venter e por Zamaswazi Dlamini-Mandela (neta do ex-presidente e autora do prefácio da obra ), mostra  diversos Nelsons: o marido dedicado, o pai afetuoso, o político obstinado, o amigo fiel e um aluno esforçado que estudou atrás das grades para se formar em direito... “O que me tocou em particular foi atestar  o que minha mãe e minha tia sofreram quando crianças. Com frequência, ficavam órfãs de pai e mãe quando minha avó era presa também. Esta compilação respondeu a muitas das perguntas que costumavam me desconcertar: ‘Como meu avô sobreviveu a 27 anos na cadeia? O que o fez seguir em frente?’ Nas palavras dele podemos encontrar respostas”, comenta Zamaswazi.

Guerra de ideias - De 5 de agosto de 1962 a 11 de fevereiro de 1990, foram centenas de cartas, escritas ainda que Mandela tivesse certeza de que não sairiam dos muros da Prisão de Segurança Máxima da Ilha de Robben. Talvez tenham sido fundamentais para preservar sua sanidade. A leitura, quando possível, também era muleta, às vezes sugerida nas missivas.

Em 1969, em correspondência à segunda mulher, Winnie  (1936-2018), ele recomenda o best-seller de 1952 do psicólogo Norman  Peale, O Poder do Pensamento Positivo: “Não dou importância alguma aos aspectos metafísicos dos argumentos dele, mas considero valiosas suas visões sobre temas físicos e psicológicos. Ele defende a ideia básica de que o que importa não é tanto a atribulação que a pessoa sofre, mas sim sua atitude diante dela”. Pai de cinco filhos pequenos quando foi preso, Mandela só tinha permissão de vê-los depois que completassem 16 anos. As cartas eram seu instrumento para educá-los minimamente."Esse livro é um lembrete de que poderíamos facilmente  voltar àquele lugar de ódio, mas demonstra também que a resiliência pode sobrepujar situações insuportáveis" 

Zamaswazi Dlamini, neta de MandelaAssim, escrevendo em ritmos diferentes, primeiro uma carta a cada seis meses, depois seis missivas por mês, ele só podia falar sobre assuntos considerados inofensivos. Não podia usar metáfora alguma. Certa vez, escreveu alguma coisa relativa à “guerra de ideias” e teve que cortar a locução fora. Ao longo do tempo, manteve o hábito de copiar as cartas num caderno. Numa mensagem oficial de queixa às autoridades, depois de 11 anos encarcerado, disse: “Gostaria que a ciência pudesse inventar milagres e fazer minha filha receber seus cartões de aniversários perdidos e ter o prazer de saber que seu pai a ama”.

A escrita de Madiba comove por demonstrar uma altivez inesperada para suas condições de vida, aspecto que se lê até mesmo nas cartas mais dolorosas, escritas depois da morte de sua mãe, Nokoseni, em 1968, e de seu primogênito, Thembi, um ano depois. Em carta a Winnie, Mandela lembra da última vez em que viu o filho, em 1962, então com 17 anos, e o rapaz estava vestido com uma de suas calças: “Fiquei profundamente comovido, pois os fatores emocionais subjacentes à sua ação eram muito óbvios. Nos dias seguintes, minha mente e meus sentimentos ficaram agitados ao perceber o peso e a pressão psicológica que minha ausência de casa tinha imposto às crianças”. Em outro, lamenta a perda da mãe: “Nunca na vida pensei que não teria a possibilidade de enterrar minha mãe. Ao contrário, eu alimentara a esperança de que teria o privilégio de cuidar dela em sua velhice”. Nelson Mandela, no início dos anos 60, antes de ser sentenciado à prisão perpétua (foto/divulgação) Doçura e elegância -  A elegância e a doçura permeiam quase todo o discurso de Nelson Mandela. Até mesmo quando, nitidamente desolado pelo afastamento da família, ele consola os filhos por causa da distância imposta. Em carta de 1969, acalenta as filhas Zenani e Zindzi, a do meio e a caçula, respectivamente:  “Eu não sei, minhas queridas, quando vou voltar. Ninguém sabe quando vai ser, nem mesmo o juiz branco que disse que devo ficar preso. Não se preocupem comigo agora. Estou feliz, bem de saúde e cheio de energia e esperança”."As palavras de Mandela são como uma bússola em mar revolto, terra firme em meio à forte correnteza"  Barack Obama, ex-presidente dos Estados UnidosNascido em 18 de julho de 1918 em Mvezo, Transkei, África do Sul, Nelson Rolihlahla Madiba Mandela lutou contra o regime segregacionista da África do Sul que foi instaurado após a vitória do Partido Nacional em 1948. Em 1962, ele foi condenado a cinco anos de prisão por incentivar greves e viajar ao exterior sem autorização do governo. Dois anos depois, novamente julgado, foi condenado à prisão perpétua por sabotagem e conspiração para que outros países invadissem a África do Sul - o que ele negava veementemente.

Mandela foi solto apenas em 1990, devido à fortes pressões e sanções internacionais que acabaram inviabilizando o regime autoritário sul-africano e obrigou o país a passar por um processo de abertura. Suas ideias, como se pode ler, estão livres.

O livro, organizado pela jornalista Sahm Venter, sai no Brasil pela editora Todavia e custa R$ 85 (foto/divulgação)