Mimimi? Homens expressam sentimentos e questionam o 'macho de verdade'

Masculinidade tóxica e estereótipos de gênero são debatidos por quem busca fugir do padrão

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  • Laura Fernades

Publicado em 13 de agosto de 2018 às 06:10

- Atualizado há um ano

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Homem não chora, afinal “expressar sentimentos é mimimi”. Dançar com um pouco mais de molejo? Nem pensar, pois pode parecer “afeminado demais”. “Seja macho rapaz”, “haja como homem”, prontamente alguém corrige. Frases como essas são ditas todos os dias e quem nunca ouviu algo do tipo que atire a primeira pedra. Nas pequenas atitudes, o estereótipo do chamado “macho alfa” lembra a todos o quão machista ainda é a sociedade contemporânea.

A pesquisa Google Consumer Surveys 2018 revelou, por exemplo, que mais da metade dos homens entrevistados já foi chamado de “gay” ou “afeminado” por ter expressado algum tipo de sentimento. Além disso, 75% dos homens entre 25 e 44 anos nunca tinham escutado o termo “masculinidade tóxica”, que tem ganhado cada vez mais espaço. Pois é justamente essa compilação de regras sociais do que se entende como “homem de verdade” que resulta na chamada masculinidade tóxica.

Tóxica porque a reprodução do machismo vitima mulheres, aumentando as taxas de feminicídio, e a comunidade LGBT como um todo. Mas tóxica também para o próprio homem que tenta se reinventar e esbarra nos padrões impostos historicamente. Novos tempos, velhos hábitos? Não por muito tempo, afinal a busca por novas masculinidades reacendeu o debate em torno dos estereótipos de gênero.

Claro que há a influência do posicionamento das mulheres que não aceitam mais determinados tipos de comportamentos machistas. Mas há também a busca dos homens por um bem-estar psicológico ao questionar os ideais do “homem de verdade” e o sentimento de inadequação e opressão que acompanham a máscara da masculinidade.

Ainda há espaço para o “herói durão” que se expressa com violência? Para o homem que “tem que ser provedor”, mostrar virilidade o tempo todo e esconder seus sentimentos? Parte do time de escritores do site Papo de Homem, que há dez anos debate o universo masculino, o designer e músico paraense Luciano Andolini, 31 anos, faz seu alerta:“Os homens cultivam muitas amarras e o resultado a longo prazo dessa pose de fortão é a solidão, que é difícil de trabalhar”.Rodas de conversa Por isso, a busca por espaços de diálogo tem crescido, sejam eles reais ou virtuais. Basta fazer um passeio pela internet para ver que o panorama mudou. Só para se ter uma ideia, o público masculino foi responsável por mais de 10 milhões de visualizações sobre temas voltados à masculinidade no YouTube, em 2018, segundo dados internos divulgados pelo Google.

Comportamento, moda e maquiagem são só alguns dos temas mais buscados em sites ou canais do YouTube como Manual do Homem Moderno, Ilha de Barbados e Papo de Homem. Professor de geografia, youtuber, escritor e pesquisador no campo das masculinidades negras na Uerj, o carioca Caio César dos Santos, 23, tem se destacado por debater a masculinidade em seu canal e por promover rodas de conversa presenciais.

“Eu já escrevia há algum tempo sobre o tema, mas entendi que o contato direto das rodas pode ser, também, muito transformador. Não é um hábito muito comum aos homens conversar sobre esses temas. Então as rodas quebram um pouco a barreira”, conta Caio. A maior dificuldade, acredita o geógrafo, é fazer os homens entenderem que essas construções de masculinidade “não são positivas para eles e que há uma real necessidade de mudança”. O geógrafo carioca Caio César tem se destacado por debater as masculinidades em seu canal do YouTube e em rodas de conversa presenciais (Foto: Divulgação) “Demonstrar fraquezas é como ser enxergado como menos homem. Há um grande desestímulo para isso entre os homens. Eu sempre chorei bem pouco na minha vida e boa parte era por vergonha, por achar que meus motivos não eram relevantes o suficiente para um homem chorar”, revela Caio, que se entende como um homem negro, hétero e cis (pessoa cujo gênero é o mesmo que o designado no nascimento).

Por isso, refletir sobre si mesmo é urgente, defende Caio. Principalmente porque “ser homem, hoje em dia, diz respeito a qualquer pessoa que esteja sob o julgo das construções de masculinidade, seja branco, preto, gay, hétero, cis ou trans”. “Machismos são práticas realizadas por homens a partir de uma masculinidade tóxica. Práticas realizadas contra outros homens, contra si, mas principalmente contra mulheres”, destaca.

Acontece que por mais desconstruído que tente ser, Caio ainda se vê em atitudes machistas. “Às vezes me pego explicando coisas para as mulheres mesmo que não haja necessidade de explicação, me colocando num patamar professoral”, reconhece. Então reforça que é fundamental sair da zona de conforto e julgar comportamentos tidos como normais. “Precisamos ter escuta ativa, afetividade, rever comportamentos, aceitar a fragilidade e, principalmente, se responsabilizar pela mudança”, defende.75% dos homens entre 25-44 anos nunca ouviram falar em masculinidade tóxica (Fonte: Google Consumer Surveys Abril 2018)Afeminado Casado há nove anos com o marido, o publicitário e relações públicas baiano Guilherme Miranda, 30, destaca que quando há uma supervalorização do macho viril há, por consequência, a desvalorização de tudo aquilo “que não é masculino”. “Os homossexuais, por exemplo, são muito atacados”, reforça Guilherme, ao mesmo tempo em que reconhece que, “infelizmente o machismo também está presente entre os homens gays”.

“Há uma valorização entre os próprios homens gays da masculinidade. Então, o comportamento afeminado, que remete à fêmea, à mulher, é muitas vezes desvalorizado e vira motivo de chacota”, ressalta. “Claro que há um movimento no sentido oposto que é muito forte, de ‘quanto mais afenidado melhor', o que é muito bom”, acrescenta. Porém, apesar dos avanços, homens gays e heterossexuais continuam enfrentando "o problema do estereótipo do macho”.

“Ambos tendem a se comportar de uma forma que os aproxime mais do ‘macho viril, másculo’. O homem gay faz para fugir do preconceito que existe principalmente a respeito do homem ‘afeminado’. Já o heterossexual precisa, em alguns casos, acentuar ou fingir uma masculinidade para fugir das piadinhas dos amigos”, denuncia.O termo “machismo no Brasil”, pulou da 9ª posição para 3ª em volume de busca no Google, crescendo 263% nos últimos dois anos (Fonte: Dados Internos Google 2018)Além do baba Ao observar que os homens restringiam seus espaços de socialização a “babas”, churrasco e bar, o professor de francês baiano Marcus Boaventura, 26, decidiu criar um “movimento de transformação dos homens” chamado O Macho da Relação. Inspirado nas mulheres que debatem intimidades, problemas e anseios, o grupo estreou no sábado (11) as rodas de conversas que vão acontecer no Ohana - Espaço Colaborativo, que fica no Shopping Rio Vermelho.

“A maior dificuldade é, sem dúvida, romper a barrreira de que homem não discute determinados assuntos. A intenção é ter liberdade para quebrar tabus e mostrar que não estamos sozinhos nas angústias pelas quais passamos”, destaca Marcus sobre o grupo cuja proposta é “desconstruir a masculinidade tóxica com discussão”.

Entender que “não é não”, deixar de reproduzir piadas machistas e misóginas e parar de “ajudar” e, sim, fazer as tarefas domésticas são algumas das dicas de Marcus para a construção de uma nova masculinidade. “Não suporto mais ver histórias de homens que matam mulheres por motivos banais”, desabafa o professor. O professor de francês baiano Marcus Boaventura criou o grupo de debate O Macho da Relação que ainda não tem periodicidade definida, mas é aberto a todos. Basta se inscrever pelo Instagram @omachodarelacao (Foto: Divulgação) No mesmo caminho, Luciano Andolini, do Papo de Homem, propõe o diálogo como solução possível. “Não é só sair com homens às quartas para jogar bola, mas começar a expor e criar pontes de diálogo”, pondera. “É o exercício de baixar a cabeça, ouvir, pedir desculpa, saber que vai errar. Exercício empático e de humildade que é essencial”, garante.

Luciano reforça que só o debate é capaz de potencializar formas saudáveis de exercer a masculinidade. Para isso, é preciso entender que as questões masculinas não são menores.“Não se compara nem de longe todo tipo de opressão que as mulheres têm com as mesmas questões. Mas o mundo emocional e interno é muito vasto. Olhar pra dentro não é mimimi, pelo contrário, é um ato de coragem gigantesco”, convida Luciano.Conheça alguns números

81% dos homens  brasileiros consideram o Brasil um país machista (Fonte: ONU Mulheres 2016)

75% dos homens entre 25-44 anos nunca ouviram falar em masculinidade tóxica (Fonte: Google Consumer Surveys Abril 2018)

O termo “machismo no Brasil”, pulou da 9ª posição para 3ª em volume de busca no Google, crescendo 263% nos últimos dois anos (Fonte: Dados Internos Google 2018)

10 Milhões foi o número de visualizações no YouTube de vídeos sobre temas voltados à masculinidade (Fonte: Dados Internos Google 2018)

Homens dão dicas de como desconstruir

1. Entenda  que "não é não"

2. Não reproduza piadas machistas e misóginas

3. Pare  de "ajudar" e sim faça as tarefas domésticas

4. Tenha uma escuta ativa. Saiba a hora de silenciar-se. Não interrompa a fala das mulheres

5. Reflita, a cada atitude, se aquele comportamento é machista. Pergunte. Não é vergonhoso

6. Saia da zona de conforto e julgue os comportamentos que são entendidos como certos/normais

7. Fortaleça sua afetividade

8. Aceite sua fragilidade

9. Se responsabilize  por suas mudanças

10. Converse com outros homens sobre seus sentimentos

Dicas de canais e filmes

Precisamos falar com os homens? Uma jornada pela igualdade de gênero

The Mask You Live In (A Máscara em que Você Vive)

Caio César | Como as masculinidades podem dialogar?

Ilha de Barbados | Macho: ser ou não ser?

Papo de Homem | O que as pessoas esperam de um homem negro

Manual do Homem Moderno | O que é ser um homem de verdade?

Eu Não Sou um Homem Fácil (Trailer)