Minha mãe possuía uma coragem que não se acha fácil

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  • Kátia Borges

Publicado em 19 de janeiro de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Muito se tem falado sobre loucura nesses dias como metáfora, a despeito do que seja de fato o transtorno mental e suas dores (leiam Daniela Arbex). Na realidade, incoerência nada tem a ver com insanidade. Uma coisa aprendi na infância: devemos acolher as pessoas que vivem nas ruas com generosidade. Ao menos era assim que minha mãe agia, esparramando-se em bondade com Galinha Branca.

Nunca soubemos o nome dela e todos a temiam. Galinha Branca era bem magrinha e, se fecho meus olhos agora, consigo ver com nitidez o seu rosto chispado. Arrastava atrás de si um imenso saco de quinquilharias. Bem criança ainda, e muito curiosa, eu ficava observando aquele monte de coisas que ela protegia com tanto cuidado e especulando sobre a origem daquela mulher agressiva que atirava pedras nos outros.

Minha mãe possuía uma coragem que não se acha fácil. Alimentava quase todos os dias Galinha Branca em nossa porta, para espanto e incômodo dos vizinhos. Não sei como as duas fizeram o primeiro contato, mas lembro que ela se sentava no batente de nossa casa e comia com as duas mãos. Naqueles raros momentos de calma, eu ia me aproximando, repleta de perguntas que me inquietavam aos 8 anos.

Qual seu nome? De onde veio? Tem parentes? Que coisas são essas que você carrega nesse saco plástico? Antes que ela levantasse e me atirasse pedras, minha mãe interrompia o questionário e me puxava para dentro. Eu ficava furiosa com os meus amigos da rua que, na crueldade da infância, perseguiam aquela mulher tão frágil. É que eu já via Galinha Branca como um dos nossos.

Não sei vocês, mas era muito natural toda família ter pessoas com transtornos mentais. Na minha, havia alguns. Parentes que sumiam, internados em sanatórios, e reapareciam meses depois sob silêncio e cuidados. Perdi a conta das vezes em que fui com minha mãe, a contragosto, levar roupas limpas para um dos irmãos de meu pai. Eu já estava mais crescida, e esquecida de como se deve tratar as pessoas.

Também passei a sentir medo da insanidade, da combustão espontânea de pessoas e das notícias do Fantástico. Arder de repente em um incêndio inexplicável, enlouquecer de repente e nunca mais voltar à normalidade. De certo modo, tudo se misturava à irrealidade cotidiana do mundo.

Lembrar Galinha Branca em nossa porta enfileira na memória uma série de recordações da infância. E da minha mãe. De como ela foi a única da família capaz de lidar com o cão de guarda que abandonaram no quintal da casa que alugamos. De como ela alimentava os micos e os cães de rua sem medo. De como ela me disse, um dia antes de morrer, que nós erámos iguais em coragem.

Não sei, talvez aquele tenha sido seu derradeiro engano. Estive um dia, anos atrás, em uma exposição dos despojos de Buda no Museu da Misericórdia, aqui em Salvador. Cada visitante poderia fazer um pedido e uma prece. Levei comigo, como um mantra, a palavra saúde. Mas, ao ser chamada por um dos monges, ouvi a minha voz dizer coragem. “Coragem”, repito hoje para mim de vez em quando.