Moradores da folia: a rotina dos ambulantes que transformam o circuito em casa

São dois mil profissionais licenciados para trabalhar nos dois circuitos

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  • Fernanda Santana

Publicado em 28 de fevereiro de 2019 às 05:35

- Atualizado há um ano

. Crédito: Arisson Marinho/CORREIO

Durante pelo menos dez dias, não há sono, não há teto, não há banho. Os ambulantes substituem o teto firme de suas casas por lonas, o colchão por pedaços de papelão e o descanso pelo trabalho. Saem de casa e dormem na rua para garantir o ponto no dia seguinte. Afinal, é grande o receio de roubos de mercadoria. O ritual começa com as festas pré-carnavalescas no circuito Dodô, o Barra-Ondina, na semana anterior ao início da folia. Durante pelo menos dez dias, porque podem ser mais, são os mais assíduos dos foliões.  

Os ambulantes, geralmente, chegam às ruas do circuito na sexta-feira anterior ao início do Carnaval. Quando percorreu as ruas da Barra-Ondina, na última segunda-feira (25), a reportagem observou as calçadas ocupadas por ambulantes em meio a colchonetes, papelão e pertences pessoais. Do Campo Grande à Avenida Sete, o comércio local e a ausência de festas anteriores à abertura oficial do Carnaval torna desnecessária a corrida de ambulantes. São dois mil profissionais licenciados para trabalhar nos dois circuitos: 1.336 no Dodô e 834 no Osmar, na Avenida, segundo a Secretaria Municipal de Ordem Pública (Semop).  (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Na falta de estimativa oficial de quantos fazem da rua o ponto final, os ambulantes explicam porque estão ali. É, antes de tudo, uma questão de sobrevivência do negócio. “Ninguém quer ir para casa e, quando voltar, ver que não sobrou nada”, opina Nice Nery, 46, ela própria na esquina da Rua Dias D’Ávila com a Avenida Oceânica para fazer guarda à mercadoria. Filha de ambulante, é parte de sua vida morando na rua nos dias do Carnaval desde muito pequena.

Por isso, viu muito acontecer. Brigas entre ambulantes armados em disputa pelo ponto onde ficaria durante os seis dias de folia, por exemplo. “As pessoas se sentem donas do ponto, de tantos anos que estão aqui. Comigo mesmo é assim. Esse ponto sempre foi de minha mãe”, comenta. A profissão e os hábitos são passados de geração em geração. A filha e o neto de Nice estavam juntos dela para provar. Evelin, 20, filha, chegou a brincar em relação à escolha dos pertences levados para os dias de trabalho, cuidadosamente escolhidos para não estragar. “Já percebeu que sempre chove mais e mais forte no Carnaval?”. 

Mas o pior, mesmo, é ver o perigo frente a frente. Como viu sua mãe. Quando estão na rua, toda buzina é ouvida como um alerta.Tanto que fazem questão de corrigir a matéria se perguntados como é dormir entre mercadorias, no chão. “A gente não dorme, a gente cochila. Tudo assusta a gente”, diz Marilene Moreira, 40, que repete a rotina há cinco anos, à frente de uma tenda na Marques de Leão. Virou ambulante para sustentar os oito filhos, com quem mora em São Tomé de Paripe. 

Do Farol da Barra ao Morro do Gato, é a mesma sensação: o descanso é impossível. Quase em frente ao Cristo da Barra, Rose Silva, 46, ali desde o último sábado, arrumava a bolsa para uma noite de descanso em Paripe. “Hoje vou precisar descansar, não aguento. Qualquer zoada eu já acho que vou ser atropelada. Também, com esse povo bêbado na rua...”, confessou.

De longe  A casa improvisada de Ademar e Maria de Lurdes tem dois cômodos. O primeiro, o quarto da senhora de 68 anos. O segundo, logo em seguida, de Ademar. Os dois saíram de Feira de Santana, no centro-norte da Bahia, na sexta para conseguir, a tempo, montar o local de descanso. À esquerda, estão arrumadas as cervejas e a grelha para o churrasco que pretendem vender. Mas, por que sair de outra cidade e tentar a sorte no Carnaval de Salvador, vivendo sob lonas?“O desemprego, né? A gente vai se virando. Antes, até luz a gente instalava, virava casa mesmo. Depois fomos mudando”, lembra Ademar Jesus, 41. Trazem de Feira para Salvador somente o necessário. “A nossa vida, por alguns dias, é essa que você vê”, resume Maria de Lurdes, quando aponta para o pequeno barraco, isolado da rua apenas por um pedaço de madeira. Repetem a rotina há 10 anos. Pode-se dizer que os dois são até exceção, a notar pela maioria dos ambulantes somente com pedaços de papelão. Como no caso de Ana Célia Brito, 33. A ambulante sai de Madre de Deus desde 2014 para tentar juntar dinheiro para os primeiros meses do ano.“Como é que não vem? Se não for assim, Deus sabe... No resto, no verão, vendo coisa na praia”, conta.Ao lado, a filha Rafaela, 17, grávida de gêmeos. Perguntamos à gestante de cinco meses como é dormir na rua. De início, a jovem responde, tímida: “Não sei definir”. Mas, quando a mãe levanta da cadeira para a filha repousar as pernas inchadas, a resposta fica evidente. A mãe do pequeno David, 1, Tiana Alves, 27, também precisou ser lembrada por uma colega sobre os dias de gestante na folia. “Passava mal toda hora. Aí era correria, tinha que ir para o posto”, relembra.  (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Os dias de Rafaela, no primeiro trabalho durante o Carnaval, e de Tiana, no quinto, também apontam outra realidade: a presença de crianças em ambientes inapropriados ou como ajudantes ilegais de seus pais. Na tentativa de coibir ambas situações, a Prefeitura de Salvador, por meio da Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres, Infância e Juventude (SPMJ), e o Ministério Público oferecem quatro centros de convivência, onde podem ficar hospedados filhos de ambulantes e catadores de material reciclável. Cada um tem capacidade para 100.

A principal dificuldade, acredita Márcia Teixeira, coordenadora do Centro Operacional dos Direitos Humanos e do GT Carnaval, é convencer os pais:“O mais comum é acompanhar. E o mais grave são os casos em que as crianças trabalham. Acontece que os pais têm medo de deixar os filhos nesses lugares porque não conhecem. Mas essas unidades são fiscalizadas. São locais mais seguros”. Os postos oferecidos são a Escola Municipal Osvaldo Cruz, no Rio Vermelho, Escola Municipal Casa da Amizade, no Jardim Apipema, o Colégio Estadual Mario Augusto Teixeira de Freitas, em Nazaré, e o Colégio Estadual Senhor do Bonfim, nos Barris. Ainda há vagas disponíveis e as inscrições são realizadas nos próprios centros.

Como viver Quem precisa viver na rua também convive com o medo de ser retirado dali. A Secretaria Municipal de Ordem Pública proíbe a instalação de qualquer equipamento não-licenciado, como ocorre com lonas, placas de qualquer tipo e material, barracas de camping, de praia e tendas. Por isso mesmo, muitos ambulantes evitam fotografias e mesmo diálogos. Mas Wilma Almeida, 54, questiona:“Como é que volta para casa madrugada? Como? Para correr tantos riscos no caminho?”A ambulante, no entanto, concorda em evitar alguns materiais. Quer fugir de humilhações passadas. “Já tive que ouvir uma pessoa aqui me perguntando se eu queria fazer da Barra uma favela? Todo dia alguém ouve isso aqui”, relembra. A moradora do Lobato provoca: “Devem achar que alguém está aqui porque queremos”.

A presença dos ambulantes também impulsiona outro tipo de negócios. São os comerciantes de banho. Quando chega o Carnaval, proprietários de lojas costumam vender minutos sob o chuveiro. Cada banho, custa entre R$ 3 e R$ 5. Os vendores não querem ter os nomes divulgados. “Vi que o pessoal daqui todo faz isso, não é só eu. É todo tipo de gente, gente muito carente... É triste. Mas vi uma chance de crescer uma pouco a renda”, conta um deles, próxima ao Chame-Chame. 

Somente no último final de semana, quando aconteceu o Furdunço e o Fuzuê, recebeu 30 pessoas. Oficialmente, na Barra-Ondina, a Semop disponibiliza 40 chuveiros - 20 na Avenida Centenário e 20 na Avenida Ademar de Barros. São outros 20 no Politeama e no viaduto Mãe Menininha do Gantois.

A Semop também afirma que distribuirá 960 profissionais no ordenamento da festa. "Até agora, ninguém me pertubou", diz Camila Vitória, 16, no primeiro Carnaval como moradora do Crcuito Dodô. Enquanto conversava com a reportagem, um grupo organizava o baba. Por alguns dias, seja como for, aquela será a casa de todos eles.

SERVIÇO Locais das Casas de Acolhimento Provisório: 1) Escola Municipal Osvaldo Cruz: Endereço: Rua do Meio, 13 - Rio Vermelho (Crianças de 7 a 17 anos)2) Escola Municipal Casa da Amizade: Endereço: Rua Quintino de Carvalho, 277 - Jardim Apipema (Crianças de 0 a 6 anos)3) Colégio Estadual Mário Augusto Teixeira de Freitas: Endereço: Rua da Mangueira, 19 - Nazaré (Crianças de 7 a 17 anos)4) Colégio Estadual Senhor do Bonfim: Endereço: Rua General Labatut, 49 - Barris (Crianças de 0 a 6 anos)

*Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro