Moradores relatam pânico durante ataque a banco que deixou 14 mortos no Ceará

Governador cearense minimiza ação

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Publicado em 8 de dezembro de 2018 às 11:03

- Atualizado há um ano

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Caiu a noite na sexta-feira (7), em Milagres, no Ceará,  e poucas pessoas começaram a ocupar as calçadas, diferente de um fim de semana comum. Lanchonetes na Praça da Igreja colocaram mesas e cadeiras para fora, mas nenhum cliente apareceu. Na frente das casas, as pessoas preferiram não colocar cadeiras. 

O dono de uma das lanchonetes, Júnior Belém, sentado em um banco da praça, disse ter ouvido os tiros na noite anterior. Aos 51 anos, todos vividos em Milagres, conta: "Está todo mundo assombrado. Foi tanta bala que a cidade inteira ouviu. Foi o primeiro crime que vimos e foi grande demais". Júnior mora com a mãe, de 77 anos. Nenhum dos dois confirma sensação de medo. "Os bandidos que não morreram, a Polícia já pegou", resume Júnior.

A 400 metros dali, no cenário de parte dos crimes, outra lanchonete de mesas vazias. Bem na esquina do Banco do Brasil e Bradesco, entre as recentes manchas de sangue no chão e marcas de bala nas paredes e postes, um grupo de três rapazes relata a versão que roda a cidade sobre a matança da madrugada anterior e comenta sobre as fotos dos corpos pelo WhatsApp.

O barulho de tiros também os fez acordar de madrugada. Eles preferem que seus nomes não sejam divulgados no jornal. "Milagres sempre foi uma cidade muito tranquila, até porque não tem muitas saídas para fugir. Até quando tem briga a gente fica surpreso", conta um rapaz de 24 anos sobre uma moto. 

Outro, de 28 anos, dono de loja de roupas a poucos quarteirões dos bancos, afirma: "Fiquei meia hora com a loja aberta, de manhã o clima ainda estava muito tenso, tinha muita sirene e helicópteros sobrevoando a cidade, pelo menos dois".

E comentam entre si: "Imagina se fosse na madrugada de sábado, quando tem feira nessas ruas? Os feirantes começam a chegar de madrugada. Ia ser terrível, porque era tanto tiro que parecia guerra".

Nas imagens de WhatsApp, aparece o corpo da mulher de vestido branco ensanguentado. Edneide Santos, natural de Brejo Santo, que morava em São Paulo. Um conhecido diz que ela vinha do aeroporto de Juazeiro com familiares em um Celta, quando o carro foi abordado. Edneide estava voltando para passar o Natal com a família. A filha pequena e o marido viriam dias depois.

De bermuda e sem camisa, um senhor de 72 anos (identidade preservada) conversava na calçada de casa e contava sobre ter sido um dos reféns. A residência a um quarteirão dos bancos tem muro alto e portões de alumínio. 

Ele diz que ouviu o tiroteio e pensou ser alguém tentando abrir o portão, foi  ver quem poderia ser. Junto com a mulher, abriu o portão e viu que se tratava de um tiroteio. "Fiquei escondido atrás do portão, mas vi um carro vindo na direção dos bancos, entrando na cidade, dei a mão para o carro parar e evitar passar pelo tiroteio. O carro parou e três homens armados me puxaram para fora de casa". Segundo o relato, ainda tentaram levar a mulher dele, mas ela resistiu e um dos criminosos teria dito: "Deixa a tia aí".

Os homens teriam tentado colocar o idoso dentro do carro, um Celta de cor escura, mas estava lotado. "Tinha uma mulher de vestido branco, com os olhos apavorados olhando pra mim. Gritaram para eu sentar no para-brisa do carro". Conta que, como escudo humano, dos dois lados do carro os criminosos atiravam. Deram um cavalo de pau para fugir da Polícia, voltando para o acesso a Brejo Santo e Pernambuco. Segundo ele, a Polícia não os seguiu imediatamente. "Pensei em pular com o carro em movimento, mas tive medo de quebrar o fêmur. Na minha mente só escutava a voz da minha filha, que morreu há dois anos de câncer dizendo 'calma, papai'". Já na BR-116, os criminosos pararam o carro e falaram para ele descer.

A orientação da Prefeitura de Milagres, publicada no Facebook, pedia que todos ficassem em casa. "Havia suspeita de que um dos bandidos estava escondido em uma escola infantil. A sensação de estar ilhada na própria casa foi uma pressão muito grande. Permanecemos com a família a manhã inteira no quarto dos fundos", relata a sobrinha do idoso.

Um outro morador conta a história da mulher que foi feita de refém dentro da própria casa da madrugada até a manhã de sexta. Ela teria aberto o portão de casa para entender a barulheira. Nesse momento, um criminoso teria invadido a casa, armado. Ao amanhecer, andou com ela até o Banco do Brasil, exigindo saque de R$ 500. De lá, pegou topic de linha em direção a Brejo Santo. A mulher acionou a Polícia, que o capturou dentro do veículo.

A versão que os moradores narram é de que um primeiro grupo chegou ao Banco do Brasil e ao Bradesco, que ficam praticamente um de frente para o outro, e já foi interceptado pela Polícia. Na troca de tiros, os criminosos morreram. Outra parte da quadrilha estaria entrando na cidade com os reféns, capturados na BR-116 no trecho entre Milagres e Brejo Santo. Iria usá-los, talvez na hora da explosão ou da fuga, de escudo humano. Mas aqueles que estavam com os reféns fugiram antes mesmo de chegar aos bancos e na perseguição foram mortos. "Ninguém sabe quem matou quem, mas como a Polícia iria saber que tinha um carro cheio de reféns?", disse a advogada.

Em casa À Rádio O POVO CBN Cariri, o prefeito de Milagres Lielson Landim (PDT) comentou que a Polícia orientou a suspensão de atividades no município. "É para evitar que as pessoas saiam de casa e evitar qualquer tipo de incidente envolvendo a abordagem e a tentativa de capturar os bandidos".

O comando da operação policial ocorrida ontem em Milagres pode ter ignorado alguns procedimentos de comunicação, de tática e de operacionalidade, que são obrigatórios em ações dessa envergadura. O mais grave deles teria sido a falta de previsão da possibilidade de a quadrilha fazer reféns.

Da polícia de Sergipe chegaram as informações para a Coordenadoria de Inteligência da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS) de que uma quadrilha assaltaria bancos em Milagres ou Missão Velha, municípios da região do Cariri cearense. A média de ações contra bancos no Estado em 2018 tem sido de quase um por semana.

O que teria dado de errado na operação em Milagres? O comando do Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate), do Batalhão de Choque da PM do Ceará, teria se deslocado para o Cariri sem cogitar a presença de reféns no cenário montado pelos assaltantes que seriam da Paraíba e Pernambuco.

A captura dos reféns não teria entrando no radar das escutas feitas nos telefones celulares dos criminosos. O mais provável é que os telefones que vinham sendo monitorados teriam sido descartados pelos bandidos muito antes da entrada em Milagres e antes de fazerem inocentes de escudos humanos.

O protocolo de comando da PM na Operação de Milagres também teria pecado porque não previu possíveis mudanças no comportamento da quadrilha dos ladrões de banco.

A PM teria seguido o mesmo padrão que vinha se repetindo em outras ações contra agências bancárias e carros fortes: a inexistência de reféns.

Assim ocorreu em Quixeré, no último 23 de novembro, quando seis homens tentaram assaltar um carro-forte e foram mortos pela Polícia. Ação semelhante se deu em 1º de abril do ano passado. Na ocasião, seis homens foram mortos após atacarem um banco em Jaguaruana. Um inocente foi alvejado pela polícia.

Na manhã de ontem, o titular da 5ª Delegacia da Polícia Rodoviária Federal (PRF), Gledstone Chaves, criticou também a falta de informações sobre a operação do Gate. Após serem chamados para atender a uma ocorrência no quilômetro 495 da BR-116, em Milagres, equipes da PRF foram surpreendidas por policiais militares em diligências. Sem o aviso sobre a periculosidade da situação, apenas dois policiais rodoviários foram deslocados para o local.

"Por que não comunicaram a gente? Uma ação como essa envolve todos os policiais. Fomos atender a um suposto acidente e poderíamos ter nos deparado com vários bandidos armados", reclamou Gledstone Chaves em entrevista à Rádio O POVO CBN Cariri.

Segundo o inspetor rodoviário, normalmente, em operações coordenadas, a PRF e a Polícia Federal são notificadas e envolvidas. Neste caso, isso não aconteceu. "Se fosse uma coisa coordenada, não teria deixado tantos mortos", criticou. Parte das vítimas era da mesma família, havia saído do aeroporto de Juazeiro do Norte (CE) e seguia para Serra Talhada (PE).

O clima entre a SSPDS e o gabinete do governador Camilo Santana (PT), durante o dia e a noite de ontem, foi tenso. Mesmo com a Secretaria afirmando que a PM já vinha realizando investigações contra grupos que atuavam nos ataques a instituições financeiras no Cariri.

O POVO apurou que, na reunião da cúpula da SSPDS com oficiais envolvidos na Operação de Milagres, a pergunta mais incômoda era por que os assaltantes de banco matariam reféns? E não teria havido respostas tecnicamente convincentes.

Dois grupos do Gate, em viaturas descaracterizadas, teriam entrado em Milagres e se encontrado com os assaltantes em frente ao Banco do Brasil. Desconfiados, segundo a versão dos policiais, os homens da quadrilha teria aberto fogo e os policiais revidaram. A antecipação virou tragédia. 

Perícia Secretário dos Direitos Humanos de Pernambuco, Pedro Eurico, pediu rapidez à Perícia Forense do Ceará quanto à análise dos corpos das cinco vítimas da família de Serra Talhada

O governador Camilo Santana (PT) minimizou a intervenção policial que culminou em confronto com criminosos, deixando 14 pessoas mortas, inclusive seis reféns, na madrugada de ontem, em Milagres, no Cariri. Para Camilo, a operação realizada em conjunto por policiais de Ceará e Pernambuco não pode ser considerada desastrosa, pois impediu que duas agências bancárias fossem atacadas. O governador lançou ainda suspeição sobre os civis mortos na ação.

"Vamos aguardar, até porque a intenção da quadrilha era assaltar o banco, e não assaltou. Houve uma antecipação nisso. Vamos aguardar. É estranho um refém de madrugada no banco. Então, vamos aguardar o resultado dessa investigação, desse caso de Milagres. O fato é que estavam preparados para assaltar dois bancos e não conseguiram assaltar nenhum. Houve um confronto policial e vamos saber o que ocorreu posteriormente", afirmou.

A declaração ocorreu em entrevista coletiva, realizada na tarde de ontem, após a cerimônia de inauguração do Centro Integrado de Inteligência e Controle para o Combate ao Crime Organizado no Nordeste, que já está funcionando no Palácio Iracema, no bairro Edson Queiroz. Àquela altura, por volta das 13h15min, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) já havia divulgado que seis dos mortos não seriam integrantes do grupo criminoso.

Logo em seguida, o ministro Raul Jungmann, que participou da solenidade, lamentou o episódio. "Serviu para que a gente tenha noção da importância da atualidade desse centro. Porque, em que pese o trabalho que vem sendo desenvolvido pelo Ceará, pela Segurança do Ceará, que reduziu em oito meses consecutivos os índices de violência, de fato, tragédias como essas acontecem. E na medida em que a gente possa se antecipar e evitar, sem sombra de dúvida, a sociedade agradece e você poupa vidas, que é o bem mais importante que a gente tem que proteger".

A cerimônia contou ainda com a presença dos governadores do Maranhão e do Piauí, Flávio Dino (PCdoB) e Wellington Dias (PT); do presidente do Congresso Nacional, senador Eunício Oliveira (MDB); do ministro do Superior Tribunal de Justiça, Raul Araújo Filho, além de secretários de segurança dos estados do Nordeste e outras autoridades. Entre os que discursaram, contudo, todos evitaram o assunto, que acabou ofuscando a solenidade.

Wellington Dias destacou que a criação do centro de inteligência foi viabilizada após a Segurança Pública ser alçada ao status de ministério, e criticou a fusão da pasta ao Ministério da Justiça, anunciada pelo presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL). "Um passo para trás", criticou. Eunício Oliveira destacou a aprovação pelo Congresso Nacional do fundo de R$ 2 milhões para a manutenção do Centro, em 2019.

Já Flávio Dino fez elogios ao presidente Michel Temer (MDB). Dino afirmou que, apesar de ter um "posicionamento político diverso, e bem diverso ao de Temer", as ações adotadas pelo emedebista na área Segurança Pública foram "democráticas". Ambos assinaram um termo de cooperação técnica voltado para a manutenção do centro pelos estados.

Camilo também fez um agradecimento público a Temer. "Leve, ministro, o meu agradecimento ao presidente pela coragem política e determinação de criar esse Sistema Único de Segurança Pública (Susp)", pediu.

Raul Jungmann afirmou que tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que propõe que os líderes de facções criminosas cumpram pena integralmente em presídios de segurança máxima, e não permaneçam apenas por um ano nessas unidades.O ministro reafirmou em seu discurso que em 2019, pela primeira vez, o Brasil terá meta para a redução de homicídios, de 3,5%. "Acontece que os homicídios, no Brasil, crescem 4% ao ano. E reduzir 3,5% é reduzir 7,5%. Será um enorme esforço", disse.Jungmann também defendeu políticas de prevenção como "o melhor programa de segurança que existe".