Morreu de quê? Pesquisa baiana mostra que Nordeste lidera mortes por causas mal definidas

A conclusão é de um estudo inédito de pesquisadores baianos do curso de Medicina da Faculdade de Tecnologia e Ciências (FTC)

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  • Thais Borges

Publicado em 18 de julho de 2017 às 12:13

- Atualizado há um ano

Dona Maria morreu aos 55 anos. Nunca pôde pagar uma consulta particular com um médico: tinha sempre que recorrer às filas do Sistema Único de Saúde (SUS). Mas, apesar da falta de acompanhamento médico, dona Maria parecia bem. Até que, um dia, teve morte súbita. A família não sabia dizer o motivo. Na certidão de óbito, um atestado do mistério: era uma morte por ‘causa mal definida’. 

O caso de Dona Maria é hipotético, mas representa o perfil traçado por um estudo inédito de pesquisadores baianos do curso de Medicina, da Faculdade de Tecnologia e Ciências (FTC). De acordo com a pesquisa, o Nordeste é a região que tem o maior número de mortes por causa mal definida no país. 

A pesquisa também indicou que a Bahia tem índices muito mais altos do que os indicados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O panorama completo da pesquisa ‘Tendências de Mortes por Causa Mal Definida no Brasil’ foi apresentado pela primeira vez no congresso European Meeting on Hypertension and Cardiovascular Protection 2017, que aconteceu em junho, em Milão, na Itália.No Nordeste, os dados indicam que 4,8% das mortes de pessoas com mais de 50 anos em 2015 não tinham causa definida. Na Bahia, é ainda maior: no mesmo ano, 14% das mortes não foram esclarecidas. “Quando você pega taxas de países como Dinamarca e Suíça, vai ver que é de cerca de 0,5%”, afirma o estudante Hugo Belens, 26 anos, aluno do 9º semestre de Medicina e um dos autores do estudo, ao lado das colegas Laina Passos e Jéssica Dutra. 

De acordo com Belens, o levantamento indicou que a maior incidência de mortes de causas mal definidas acontece nas áreas com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). A pesquisa relacionou o IDH das regiões com o índice de mortes de 1990 e 2014, utilizando estatísticas do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus), do Ministério da Saúde. É nas regiões com menor IDH que as mortes de causas mal definidas aumentam – caso do Nordeste e do Norte, que vem em segundo lugar, com 3,9%. Na região Sul do Brasil, que tem o maior IDH, o índice de mortes é o menor: 1,9 %. 

“Causa de morte mal definida está muito relacionada à falta de assistência médica. Ou seja, aquele indivíduo que, durante a vida inteira, não teve acesso a um serviço de saúde qualificado e eficiente acaba morrendo por uma doença que não soube identificar o motivo”, explica o estudante. Segundo ele, quando isso acontece e o corpo é encaminhado ao Instituto Médico Legal (IML), o médico legista que estiver de plantão é quem deve determinar a causa da morte. No entanto, é um médico que não conhece o histórico do paciente. 

“Muitas vezes, é difícil encontrar uma causa base do que levou ao óbito e o médico legista é obrigado a colocar ‘causa de morte não definida’. É o contrário do indivíduo que teve, durante boa parte de sua vida, um serviço de saúde que permitisse realizar exames frequentes. Quando ele conhece sua doença principal, tanto ele quanto sua família ficam informados. Se ele for a óbito, já se tem uma ideia melhor do que investigar”. 

Doenças do coraçãoOrientadora do projeto e professora do curso de Medicina da FTC, a cardiologista Lucélia Magalhães explica que a pesquisa agora vai investigar a hipótese de que a maior parte das mortes por causas mal definidas, na verdade, tenham sido provocadas por doenças cardiovasculares. Hoje, as doenças cardiovasculares são as que mais levam a óbito no Brasil – entre as mortes que têm razões conhecidas. Por ano, os índices oscilam entre 27% e 32% do total. A professora Lucélia Magalhães e o estudante Hugo Belens apresentaram o estudo em congresso na Itália(Foto: Acervo pessoal)“As doenças cardíacas são, muitas vezes, silenciosas e muito traiçoeiras, porque aparecem de repente e podem ser confundidas com outras doenças. Você pensa que é o pulmão, por exemplo, ou problema de outra ordem, mas é o coração. Pelo que avaliamos no percentual de causas não esclarecidas, vimos que elas realmente têm muito a ver com doenças do coração”, afirma a professora. Segundo ela, entre os indícios de doenças cardiovasculares estão a idade das vítimas – algumas estavam cronicamente doentes e sequer sabiam – ou o fato de terem tido uma morte inesperada. “O Norte, o Nordeste, a Bahia e Salvador têm números bastante elevados. Por isso, entendemos que há subnotificação entre as mortes por doenças cardiovasculares. Precisamos aumentar esse contingente para mostrar que precisamos de mais vagas para unidades coronarianas e mais exames específicos para reconhecimento precoce”. 

A partir de outubro, os pesquisadores devem dar início à próxima etapa do estudo: as necropsias verbais. É um trabalho de campo que envolverá a escolha aleatória de certidões de óbito por causas mal definidas e a entrevista de familiares das vítimas. A partir dessas conversas, com estudo de exames e eventual histórico da pessoa, o grupo vai investigar se a causa foi mesmo por uma doença do coração. “Em Salvador, em 2015, foram pouco mais de 1,7 mil mortes classificadas assim. Vamos escolher uma amostra representativa, de pelo menos 10% e fazer a necrópsia oral para tentar chegar o mais próximo possível da causa da morte provável”. A professora acredita que os primeiros resultados dessa nova etapa sejam conhecidos em até oito meses. 

Setor de Verificação de ÓbitoDe fato, a diretora de informação e saúde da Secretaria da Saúde do Estado (Sesab), Márcia Mazzei, reconhece que há dificuldade para reduzir o índice de mortes por causas mal definidas. Mesmo assim, ela destaca que a secretaria faz investigação após o óbito do paciente. Por ano, a diretoria que ela chefia analisa cerca de 6 mil declarações de óbito que não têm causa aparente. 

“Se a gente não investigasse essas mortes, o índice estaria em 25%, como era em 2005. Como estamos investigando, conseguimos baixar, mas nem todo o estado investiga essas mortes. A responsabilidade também é dos gestores municipais, mas nem todos fazem. Às vezes, é devido à dificuldade financeira para manter uma equipe, mas nem todos valorizam a informação para planejamento de saúde”. 

Em outubro, deve ser inaugurado o primeiro Serviço de Verificação de Óbito do estado. Com sede física no mesmo prédio do Instituto Médico Legal (IML), o serviço vai funcionar diariamente, das 7h às 7h, para atender todos os corpos que chegarem ao instituto vítimas de morte natural de Salvador e da Região Metropolitana (RMS). No entanto, o atendimento será coordenado pela Sesab. 

“Já está sendo feita uma reforma que está quase pronta em uma área que foi cedida pela Secretaria da Segurança Pública. Hoje, muitas das mortes naturais vão para o IML, mas os legistas não são formados para atender morte natural. Eles vivem se queixando para que a gente implante o serviço e sabemos da importância disso”. 

Segundo ela, o atendimento será de necropsia mesmo – diferentemente do trabalho já feito na Sesab, que é de investigação das certidões com ajuda de um médico e de um codificador de causas treinado. Sete patologistas foram concursados já foram contratados para trabalhar no serviço, que ainda vai contar com auxiliares de necropsia e assistentes sociais. Há um projeto de implantação de pelo menos outras quatro unidades do serviço no interior do estado, mas o prazo dependerá da experiência em Salvador. 

Procurada pelo CORREIO, a assessoria do Departamento de Polícia Técnica do Estado (DPT) informou que não se posicionaria sobre o assunto. Nenhum representante do Sindicato dos Peritos Criminais da Bahia (Asbac) foi localizado.