'Muita bravura e teimosia', diz Vovô do Ilê sobre 45 anos do bloco

Ilê Aiyê celebra aniversário nesta quinta-feira (1º) com Daniela Mercury, Filhos de Gandhy, Cortejo Afro e Olodum

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  • Laura Fernades

Publicado em 31 de outubro de 2018 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: André Frutuoso/Divulgação

Muita gente conhece a música Que Bloco é Esse?, mas o que poucos sabem é que o clássico do Ilê Aiyê caiu na boca do povo muito antes de ser gravado por artistas como Gilberto Gil, O Rappa e Criolo. Foi no Carnaval de 1975, um ano depois da criação do bloco afro, que a música ganhou corpo de forma inusitada: o Ilê improvisou seu primeiro desfile com um fusca, emprestado por um vereador, mas o veículo sumiu no meio do percurso e o Ilê desceu a Avenida cantando no gogó.

“Que bloco é esse?/Eu quero saber/É o mundo negro/Que viemos mostrar pra você”, dizia a letra de Paulinho Camafeu, amplificada pelo coro dos foliões. “O carro sumiu. Não lembro direito o motivo, só sei que isso ajudou e a música caiu na boca do povo na raça, né?”, ri Antônio Carlos, o Vovô do Ilê, presidente e fundador do bloco afro que completa 45 anos em 2019. Mas as comemorações iniciam amanhã, com festa na Senzala do Barro Preto, no Curuzu.

A história da música, tema do próximo Carnaval do Ilê, será lembrada no aniversário cujo repertório vai passear pelos mais de 40 carnavais do bloco afro. Para celebrar com o mais belo dos belos, foram convidados  os cantores Daniela Mercury, Gerônimo Santana e Tonho Matéria, além dos blocos afros e afoxés Filhos de Gandhy, Cortejo Afro, Malê Debalê, Muzenza, Os Negões e Olodum.

O encontro tem concentração às 19h, no Plano Inclinado da Liberdade, de onde vai sair o Cortejo do Negão, às 20h, em direção ao Curuzu. Na Senzala do Barro Preto, a anfitriã Band’Aiyê guia a festa que vai fazer uma retrospectiva da história da entidade a partir de suas músicas. “A gente vai fazer essa viagem musical e no Carnaval do próximo ano vai lembrar os clássicos do Ilê”, conta Vovô, sobre a comemoração do bloco pioneiro em levar para a folia a luta contra o racismo e pela afirmação da negritude. Vovô do Ilê destaca a luta pela afirmação da negritude (Foto: Marina Silva/CORREIO) Chocolate Mas afinal, que bloco é esse que conquistou o mundo e até hoje influência gerações por ter tido a “teimosia” de reunir apenas negros e negras em seu desfile? “Muita gente foi barrada no Ilê não por causa da pele, mas porque tinha vergonha de ser negro e se dizia ‘marrom’, ‘chocolate’... Tivemos que fazer isso. Só assim as pessoas começaram a se assumir”, conta Vovô, sobre a decisão que causou polêmica no início, mas que serviu para consolidar uma atitude de autoafirmação negra em um Brasil que estava saindo da ditadura militar.

Inspirado em movimentos mundiais como o Black Power, o Ilê cantava versos como “Somos crioulo doido, somos bem legal/Temos cabelo duro, somos black power” e valorizava a estética africana em suas roupas.“A gente começou a fazer com que o negro fizesse parte de ações afirmativas. As pessoas passaram a ter atitude: elas começaram a ter dread, black power, usar roupa colorida. São atitudes que ajudamos a construir”, comemora. Feliz por ter disseminado essa ideia pela Bahia e pelo Brasil, Vovô recorda  que foi um ato “de muita bravura e teimosia” colocar o Ilê na rua em um momento em que “tudo o que aparecia de diferente era taxado de comunista”. Até o nome do bloco foi alterado por conta do período histórico: ia se chamar Black Power. Mas, depois de escutar os conselhos da mãe e de um militar aposentado da Marinha, Vovô aceitou mudar o nome.

“Imagine, naquele momento, um grupo de jovens negros da Liberdade, cantando ‘que bloco é esse’ e ‘eu sou lindo’? Os caras ficaram assustados. A gente chegou a ter ensaios suspensos e desfile acompanhado pela polícia”, lembra. Por isso, o nome considerado subversivo foi abandonado e, no lugar, foi escolhido outro em iorubá: Ilê Aiyê, que tem a “casa dos negros” como um dos significados. “Eu particularmente não queria o nome Ilê Aiyê, mas foi o mais votado. Para nossa felicidade, era o que tinha que ser mesmo”, sorri Vovô.

Pérola Negra Com o objetivo de preservar, valorizar e expandir a cultura afro-brasileira, o Ilê abriu caminho para outros blocos afros e afoxés que se reúnem para celebrar juntos esse aniversário. “O Cortejo será um dos que vão lá dar um abraço no Ilê”, garante o artista plástico Alberto Pitta, responsável pela produção e concepção artística do Cortejo Afro.

Essa noite de celebração representa muito, diz Pitta, porque o Ilê Aiyê “é um marco e inaugura uma estética baiana a partir das cores”. “Através da estética, a gente muda pensamentos, conceitos. E o Ilê Aiyê começa tudo isso lá atrás. Ter um bloco como o Ilê, que de fato nos representa é muito importante. Fazer 45 anos não é fácil, poucas coisas no mundo estão em cartaz há 45 anos. É importante saber que o Ilê existe”, completa. Daniela Mercury é uma das convidadas da festa do Ilê, no Curuzu (Foto: Divulgação) Parceira de longas datas, Daniela Mercury reforça o coro e diz que o anfitrião é “um bloco importantíssimo e inovador”, principalmente por causa “desse cunho político, afirmativo”. “É genial”, elogia a cantora, que vai lançar amanhã a música inédita Pantera Negra Deusa, seu presente para o Ilê, um “samba-afro fortíssimo” inspirado no filme da Marvel (veja a letra no site do CORREIO).

Responsável por cantar o Ilê em suas músicas, como Pérola Negra e Por Amor Ao Ilê, Daniela defende que o bloco “virou uma entidade de extrema importância cultural no Brasil e no mundo desde que surgiu”, com papel importante no Carnaval, “um ambiente de luta, afirmação, um ambiente identitário fundamental”.

“O Ilê entrou com seu discurso contundente, contestador, afirmativo, de falar do orgulho de ser negro. Isso é de extrema importância para a luta pela inclusão, contra o racismo e pela aceitação das diferenças que, infelizmente, tem que ser feita todo dia”, reforça Daniela.“A vida inteira, no Brasil, foi importante cantar o orgulho de ser negro e agora essa necessidade se reitera. Precisamos cantar todos os dias, sim”, afirma.Só o começo Mais do que um bloco, o Ilê também se destaca pelo trabalho social na Escola Mãe Hilda, que funciona há quase 30 anos, como parte do Projeto de Extensão Pedagógica do Ilê Aiyê. Além de destacar aspectos da história afro- brasileira, a escola atua em conjunto com a Escola de Percussão Band’Erê e a Escola Profissionalizante.

“A importância do trabalho social que o Ilê faz passa por uma mudança estética de assumir a identidade negra, mas também em comunicar a história de África para essa comunidade”, destaca o estilista paulista radicado na Bahia, Renato Carneiro. Curador da 42ª Ocupação Artística do Itaú Cultural, exposição gratuita sobre o Ilê em cartaz até janeiro de 2019, em São Paulo, Renato lembra que o Carnaval é só um pedaço da farta trajetória. “O bloco como a gente vê na rua é a ponta do iceberg”, convida.

Aniversário do Ilê Onde: Senzala do Barro Preto (Ladeira do Curuzu) Quando: Quinta-feira (1º), às 19h (concentração), às 20h (cortejo) e às 21h (shows) Ingresso: R$ 60 | R$ 30 (pista); R$ 100 (camarote). Vendas: local e Boutique do Ilê (Pelourinho)

Confira a letra inédita feita por Daniela Mercury para o Ilê Aiyê

Pantera Negra Deusa (Daniela Mercury e Gabriel Póvoas)

A pantera negra, a deusa A mãe original do mundo Mãe da única raça A raça humana   Somos todos filhos da preta Da preta ancestralidade africana Filhos da tua nobreza Filhos da mama wakanda

Todas as cores de pele  Ssão da áfrica Todas as matrizes e tribos são da áfrica Ameríndios, criolos e brancos são  Da áfrica  A beleza e os sons do infinito são da áfrica

E o brasil nasceu da áfrica, Tua mama Filho caboclo de mãe baiana   E o brasil é preto, E o branco é preto, É negão !   E o brasil é preto, E o índio é preto, É negão!   O brasil é  preto É preto, é branco É negão!   O brasil é preto, Como é preta essa nação

Ilê, ilê aiyê Ê pantera negra é ela Ilê aiyê , filho de mandela, pantera negra 

Ê pantera negra é ela Ilê ilê ilê , filho de mandela, pantera negra  Deusa do ebano

A pantera negra, a deusa A mãe original do mundo Mãe da única raça Da raça humana   Somos todos filhos da preta Da preta ancestralidade africana Filhos da tua nobreza Filhos da mama wakanda

Todas as cores de pele  São da áfrica Todas as matrizes e tribos são da áfrica Ameríndios, criolos e brancos são  Da áfrica  A beleza e os sons do infinito são da áfrica

E o brasil nasceu da áfrica, Tua mama Filho caboclo de mãe baiana   E o brasil é preto, E o branco é preto, É negão !   E o brasil é preto, E o índio é preto, preto É negão!   O brasil é  preto É branco, é preto É negão! é negão! é negão   O brasil é preto, Como é preta essa nação

Ilê pantera negra

Diga diga diga onde é wakanda   Wakanda é aqui Wakada é no ilê É ... wakanda é na áfrica   Wakanda é bahia  Portugal sul e norte Da américa 

Wakanda é na europa, na ásia,  Na índia, na portela Wakanda é lugar de nobreza é Wakanda é a terra

Pantera negra, negra, negra 

Ê pantera negra é ela Ilê , ilê, filho de mandela, pantera negra 

Ê pantera negra é ela Ilê , ilê, filho de mandela, pantera negra 

Deusa do ebano Deusa da beleza Deusa do ébano, deusa do ebano, deusa do ébano, do ébano  ilê Ilê, ilê

Diga, diga, diga, diga, diga, diga

Wakanda, wakanda, wakanda Pantera negra

Depoimento sobre a música Pantera Negra Deusa"Durante 3, 4 meses tenho escrito essa canção, um samba-afro fortíssimo que tem a participação especial de músicos de Ilê tocando comigo. Inspirada no filme, sim, que é a mãe ancestral, e o Ilê como um Pantera Negra. Ainda cito Mandela, porque a gente está no centenário de Mandela, uma figura completamente relacionada com toda a afirmação do povo negro no mundo, um grande pacifista. Minha homenagem ao Ilê, a Mandela, e a toda a cultura afro-brasileira e africana no mundo. Acho genial o filme e fiz uma releitura, uma historinha paralela, afinal de contas a Bahia é, sem dúvida, uma Wakanda (risos)", diz Daniela Mercury