Muita brutalidade pra dar conta

Senta que lá vem...

  • D
  • Da Redação

Publicado em 21 de agosto de 2019 às 11:05

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

Tudo começou num sábado de manhã de um ano que não me lembro, quando eu passeava tranquilamente pela Baixa dos Sapateiros com Laura. Sem que eu esperasse, um louco aos berros e com uma bíblia na mão, meteu a mão nas minhas guias de Omolu e Iansã, penduradas no pescoço, não para roubá-las, mas para quebrá-las ali em público, causando um vinco vermelho e ardente no meu pescoço. As contas vermelhas, pretas e brancas rolaram sobre o asfalto negro da Avenida J.J. Seabra. O homem era um fanático e eu não reagi, nem tentei segui-lo na sua carreira desesperada e aos berros para exorcizar o demônio do meu corpo. A Baixa dos Sapateiros inteira assistiu à cena silenciosamente. O azul do céu estava bonito demais para me aborrecer com maluco.

No regresso, passei nas 7 Portas, comprei – e lá mesmo lavei seguindo os preceitos sagrados -, fios de contas dos meus Orixás, muito mais belas e vistosas. Sai exultante, abri mais um botão da camisa para expor a beleza das joias sob o sol luminoso. À tarde fui ao shopping Barra assistir um filme, muito exibido com as minhas contas novas. Ao descer as escadas rolantes, senti um baque seco no pescoço e contas rolando pela engrenagem da escada. Dessa vez era uma senhora branca e histérica que repreendia o Satanás e ainda me culpou pelo fato de as contas terem travado o mecanismo da geringonça rolante. Seguranças e a filha da desequilibrada formaram um coro do “deixa disso”.

Não perdi o meu programa. Assisti ao filme de Copolla e na saída, numa loja de souvenir ali mesmo no shopping, comprei por um preço faraônico duas guias dos meus Orixás, mas de qualidade inferior àquelas que a velha branca da escada rolante havia quebrado. Essas duraram até os festejos do 2 de Julho. Na passagem do batalhão de seguidores do deputado Sargento Isidoro, senti um puxão que já estava ficando conhecido. E as contas rolaram misturadas à multidão, sobrando nas minhas mãos o fio de nylon e duas ou três miçangas de cada uma delas.

Não me fiz de rogado. No mesmo dia, no Pelourinho mesmo, cometi uma loucura financeira e adquiri uma guia de Omolu com feche de prata e uma de Iansã, com uma bela pedra de coral no nó de amarração. Era até perigoso andar pelas ruas com algo tão valioso, dividido em dez vezes no cartão. Semanas depois fui convidado para participar de um programa da televisão local. O diretor, muito discretamente, me pediu que eu as escondesse de modo que elas não aparecessem, quando gravassem o meu depoimento. Assim o fiz sem dar importância ao insulto que mais uma vez a minha religião sofria.

Na manhã seguinte, uma mulher negra, que estava sentada ao meu lado no metrô, levantou-se pálida e de olhos arregalados, ao dar conta de um pedacinho das guias que se entremostravam um pouco acima da gola da minha camiseta de malha. E outras e outras história de igual teor a mim se sucederam, nesse jogo duro do racismo na Cidade da Bahia.

E eu persistente, continuava a usar as minhas guias, acrescidas de outras: uma linda de Oxalá, uma amarela vibrante da Padilha Cigana, uma que é um mimo colorido dos Erês. Meu pescoço sente o peso e o calor das joias que orgulhosamente carrega. Noite passada eu tive um sonho com Nanã Buruquê, que me aparecia velhinha se apoiando em um cajado e me dizia: “essas suas contas são enfiadas em fio de aço – presente de Xangô". E essas contas força humana nenhuma quebrarão.

Texto publicado originalmente no Facebook e replicado com permissão do autor