Museu a céu aberto: grafite tem história contada em livro

Ruas Salvador registra a produção dos últimos 30 anos

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  • Laura Fernades

Publicado em 25 de junho de 2021 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Fotos: divulgação

O grafite é um museu a céu aberto que traduz a identidade de um povo. Mas como arte efêmera, pode durar mais ou menos tempo a depender da quantidade de sol e chuva nos muros da cidade. Na tentativa de eternizar essa expressão artística, o livro Ruas Salvador (Editora Gris | 398 páginas) registrou a produção da arte urbana dos últimos 30 anos na capital baiana, com curadoria do grafiteiro Eder Muniz, que tem quase 25 anos de carreira. 

Contemplado pela Lei Aldir Blanc, o Ruas Salvador teve sua primeira edição esgotada e agora se organiza para ampliar a tiragem com o novo edital que será lançado em julho. Registro histórico, o livro contempla grafites e pixos feitos em Salvador entre os anos 1990 e 2020, que traduzem o cotidiano de crianças e famílias nordestinas, o grito da favela, a resistência do povo negro e dos povos indígenas, só para citar alguns.  Representatividade feminina e negra no trabalho de Ananda Santana Com influências que vão da ópera ao pagode, cita Eder, 38 anos, a arte urbana não para de se renovar e é isso o que o livro mostra: uma expressão viva e democrática. “É arte contemporânea, é a arte mais vista do momento porque não exclui ninguém. É de todas as classes: da doméstica ao executivo”, destaca o curador do livro que resgata os principais agentes e coletivos que construíram a história da arte urbana soteropolitana. 

Além do próprio Eder, são retratados nomes como Tom PPL, Aids, Mina, Verme, Limpo, Bigode, Denissena, Sista Kátia, Ananda Santana, Oliver e Scank, que morreu em 2020 vítima da violência urbana. O livro reúne fotografias da arte de mais de 40 grafiteiros e pixadores, além de biografias e entrevistas com alguns deles. “Por muito tempo não houve esse registro. Se você conta a história, você valoriza a memória”, enaltece Eder. 

Com pesquisa idealizada em 2010 por Eder e pela urbanista e pesquisadora americana Carly Fox, Ruas Salvador tem texto de apresentação de Roca Alencar e poesias de Vírus e James Martins. O livro conta, ainda, com um registro do fotógrafo francês Pierre Verger cedido pela Fundação Pierre Verger.  Um dos grafiteiros de destaque da cena baiana Dimak tem seu trabalho registrado em Ruas Salvador Grafite x pixação 

Ao longo das quase 400 páginas, o leitor se depara com momentos marcantes da arte urbana, percebe a transformação das expressões artísticas, a inclusão de mulheres na cena até então dominada por homens e a reaproximação de pixadores e grafiteiros. Os primeiros, mais ligados às letras, e os grafiteiros, mais voltados às cores e aos personagens, se afastaram durante a execução do projeto Salvador Grafita, explica Eder. 

Implementado pela prefeitura em 2005, durante a gestão de João Henrique, o projeto previa a intensificação da pintura de passarelas, muros e viadutos da cidade. “O Salvador Grafita meio que atirou o grafiteiro contra o pixador e vice-versa. Quando virou um jogo político, de interesse de amigos de amigos, os pixadores foram perseguidos”, critica. “Mas nesse momento Salvador vive um momento de paz”, agradece. 

“Apesar de todos os pesares”, a existência do projeto Salvador Grafita foi importante, na opinião da ilustradora e grafiteira Ananda Santana, 25, conhecida pela assinatura Srt.as. Isso porque “trouxe artistas que muitas vezes estavam no anonimato e conseguiram, através do projeto, pintar a cidade com certa ‘liberdade’, ‘proteção’ e ‘estrutura’”, mesmo que fossem pontos delimitados pela prefeitura e com ressalvas.  Slin em ação: livro mostra as principais diferenças entre o pixo e o grafite e defende a liberdade artística   Tom PPL, que está na cena desde 1992, acrescenta que o nível aumentou com a evolução técnica e Salvador passou a surpreender o Brasil e o mundo, com artistas cada vez mais respeitados. “Até um tempo atrás era considerado vandalismo, mas tudo que expressamos fez nos tornarmos o que somos sem precisar lutar. A nossa luta foi sempre fazer o que sabemos: embelezar as cidades! Sempre foi e sempre será arte”, defende. 

Hoje, o respeito impera e a maioria dos grafiteiros reconhece que a essência do grafite é a pixação, opina Eder. Seja qual for, a arte urbana é uma forma de questionar o direito ao espaço público e de expor pensamentos. “É o termômetro que mede como está a favela, a escola pública, o que está faltando. É o grito mesmo, as pessoas querem se expressar, falar o que tá doendo”, afirma. “O grafite é uma cultura, não é uma técnica”, completa Eder.  

Evolução 

Na rua desde 2014, Ananda conta que o livro Ruas Salvador traz um levantamento importante. Ela percebeu, com a leitura, que o grafite cresceu e a técnica evoluiu, apesar da dificuldade de conseguir material, dos desafios com deslocamento na cidade, das represálias da polícia e da sociedade. “Hoje tudo isso continua, mas acredito que houve certa melhora: as pessoas começaram a enxergar o graffiti como uma arte que merece respeito”, diz. 

Apesar de haver muito a ser feito, Ananda ressalta o aumento da participação das mulheres como “uma evolução grandiosa”. As grafiteiras de hoje chegaram com “vontade de transformar a cidade através de uma ótica feminina”, enaltece a responsável por dar voz à representatividade de mulheres negras. Ananda acrescenta, porém, que poucas são retratadas no livro, o que reflete o longo trajeto a ser trilhado daqui pra frente. 

Apesar dos obstáculos, o livro mostra um amadurecimento da arte urbana. Foi nos anos 2000, quando começaram a ser criados os coletivos e as mulheres passaram a se sentir seguras nas ruas, que a pixação passou por uma transformação. Antes ligada à caligrafia “mais embolada”, ela foi ficando mais solta e começou a ser reconhecida como letreiro baiano, com letras mais tribalizadas, explica Eder.  

É essa estética tribal que dá a cara da cena de hoje, ao lado de uma produção afro-indígena do grafite. “A importância do livro é enorme! Contém uma historicidade do nosso trabalho, artistas que fizeram e fazem história. Estamos juntos contando uma história que é bastante efêmera, que não temos muito controle do tempo que irá durar e muitas vezes não temos registro”, comemora Ananda. 

É a partir da arte urbana que uma cidade cria identidade, acrescenta Eder, e o Ruas Salvador mostra isso. “Antigamente, os locais eram identificados por suas esculturas, seus monumentos. Hoje, se identificam pelo grafite. São Paulo tem uma identidade, Salvador tem outra. Quando você incentiva essa arte, sua cidade tem personalidade. Quando não tem, algo está estranho, a repressão é grande. O grafite é dialogo com a cidade”, arremata. 

5 momentos da arte urbana 

(Por Eder Muniz) 

Anos 1990 – É quando começa o fomento da pixação em Salvador e isso quer dizer: jovens, de maioria periférica, querendo se expressar em uma sociedade elitista que até hoje não tem espaço em museus para pixação. É o nascimento dessa cultura em Salvador. 

1996 – Há uma efervescência no cenário, a capital começa a ganhar personagens atrelados à pixação. Cada pixador tinha um mascote que virava a assinatura dele, marca registrada. 

2000 – Acontece um novo boom, a partir da forte influência da cultura hip hop dos Estados Unidos. Em 2000, Salvador começa a contar sua história com suas lendas: passa a falar de cultura afro, indígena, êxodo rural, tendo referência muralista no grafite. 

2007 – Surgimento do Salvador Grafita que originalmente nasce do movimento hip hop da Rede Aiyê. O prefeito João Henrique se apossa da ideia e coloca o programa dentro da Limpurb. Chegam materiais novos e marcas específicas para grafite em Salvador, porque antes tudo era feito com o que pintava geladeira e bicicleta, com poucas cores. 

2007 a 2011 – Muito foi feito em Salvador, pela oportunidade de pintar viadutos e órgãos públicos pelo Salvador Grafita. O grafite começa a mostrar personalidade na capital baiana: é a cultura afro passa a ser mais presente, a cor da pele dos personagens muda, passa a ser preta. Início da consolidação da atual cena afro-indígena.