Não existe amor entre mães e babás 

Essa é uma profissão que traz, em si, contradições e dificuldades

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 4 de setembro de 2021 às 18:00

- Atualizado há um ano

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Decidi ser mãe numa situação que me permitia não trabalhar fora de casa até que meu filho tivesse idade para frequentar escola. Daí, eu trabalharia no turno em que ele estivesse estudando e cuidaria dele, pessoalmente, no resto do tempo. Quando essa situação mudou e precisei, meses depois, voltar ao mercado de trabalho, virei minha vida de pernas pro ar, esqueci as metrópoles que eu sempre amei e vim para o interior da Bahia, exatamente para a cidade onde mora a minha mãe. É ela (e apenas ela) quem (mesmo agora, depois de dez anos) “cobre” as minhas ausências necessárias. 

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(Relaxe, não temos uma avó “escravizada”.) 

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Daqui, só saio no dia em que meu filho tiver condições legais e de maturidade para, eventualmente, ficar sozinho em casa. Isso porque colocá-lo numa creche nunca esteve nos meus planos, encher de atividades extracurriculares em contraturno também não, escola em tempo integral acho maldade e ter uma “babá” em casa não me parecia alternativa, mas assombração. Assim, pelo encontro de privilégio (avó saudável, aposentada, disponível e apaixonada pelo neto) com grande esforço pessoal (eu sei o quanto me custa morar aqui), posso dizer que meu filho nunca esteve sob os cuidados de uma “babá”, exceto pelas estadias na casa do pai, onde a “mulher de branco” já fez suas aparições. Sempre me causando arrepios e contra a minha vontade. 

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Eu sei que há incríveis profissionais em todas as áreas, mas essa é uma profissão que traz, em si, contradições e dificuldades. Já começa que nenhum salário compra amor, esta que é a maior necessidade de qualquer criança. Quando o amor acontece (e acontece, eu sei) entre crianças e “babás”, ele tem prazo de validade, já que a relação pode ser rompida a qualquer momento, pois aquilo é apenas um contrato de trabalho, ainda que o pequeno cliente não saiba. Então, há duas possibilidades: a criança é tratada com um "profissionalismo" confuso (porque ela tá em casa e a moça "faz parte da família") ou  “se apaixona pela pessoa errada”. Que, em algum momento, vai embora levando, consigo, o vínculo mais importante de um tempo precioso. Tem como isso dar certo? Eu não acho. 

////// (Em minha opinião, qualquer pequena creche municipal é solução melhor do que ter uma “babá” em casa.) 

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(Para a criança, com certeza, diante da necessidade de ser ‘terceirizada”, estar em uma instituição, ter mais olhos e estímulos vários será mais seguro e saudável, em 100% dos casos.) 

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Há quem opte (ou precise), no entanto, por contratar esse tipo de profissional. Cada pessoa sabe de si, de suas possibilidades e necessidades. Assim, o impensável em minha vida, pode ser a solução encontrada para outras famílias, claro. Só que, se, quando nascem os bebês, as coisas costumam esquentar entre sogras e noras, observe as relações entre mães e babás. Historicamente, elas não são tranquilas. De um lado e do outro, irritações e retaliações, pra dizer o mínimo, num encontro que desafia desde a biologia até a civilidade. 

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São duas fêmeas desconhecidas (uma delas, parida) “dividindo” um filhote, dentro de uma relação que guarda (e reproduz) imensas mazelas escravocratas. Não à toa, o vasto repertório de anedotas e crimes sexuais envolvendo “babás” e “patrões” (maridos ou filhos das “patroas”). Não à toa, casos como a babá que se jogou do terceiro andar de um prédio, em Salvador, para escapar da tortura praticada pela contratante e todas as denúncias de ex-funcionárias da mesma “patroa” que, pelo jeito, é torturadora serial. Ainda que existam crimes e abusos nas mais diversas relações profissionais, é nessa que as coisas parecem mais intensas, dramáticas e perversas. Muitas vezes, dos dois lados.

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Me chamou a atenção o fato de que, naquele vídeo horroroso divulgado, a agressora espancava a "babá" enquanto repetia que a agredida havia chamado a bebê que estava sob seus cuidados de “criança horrorosa”. Eu não tenho como saber se isso é verdade – e é óbvio que não alivia em nada a culpa da agressora dessa e das outras mulheres que denunciaram – mas isso ficou na minha cabeça, principalmente por não ter visto ninguém comentar. Não importa nada? Os subterrâneos dessas relações são profundos. Uma vez, conheci uma moça, com mais de 20 anos, que era "babá" e tinha o hábito de usar chupeta e mamadeira. Nem ela sabia da gravidade disso e do quanto esse sintoma direcionava a escolha por cuidar de bebês. Será que isso foi trazido, em algum momento, para a racionalidade, ou deu merda no final? Não sei. Perdi o contato. 

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Lembro da mãe de uma conhecida parida a aconselhando a dispensar a "enfermeira" porque era jovem e bonita e o marido podia se interessar. Depois disso, minha conhecida tinha ódio da contratada, vigiava todos os passos da moça e chegava aos maus tratos. Do outro lado, nunca esqueci as conversas e os comportamentos que já presenciei, num parquinho da Lagoa Rodrigo de Freitas, entre “babás” fardadas. Além das memórias de amigos/as criados/as por profissionais (meus pais não usaram esse serviço), dos casos em minha família (inclusive de bebê que foi dopado) e das histórias de amigos e amigas, eu lembro bem de como funcionavam aquelas cuidadoras, longe do olhar dos que as contrataram. Tinha desprezo, descuido e raiva, na presença das crianças. Não, não era nada legal. 

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Quando eu estava recém-parida, alguém me sugeriu que eu contratasse uma “enfermeira” pra cuidar de meu filho e aí, no tempo livre, eu poderia “dar mais atenção” ao meu marido da época. Imersa em hormônios, o que eu consegui dizer foi: “se eu tiver que contratar uma mulher pra dar atenção a uma das pessoas desta casa, prefiro contratar uma prostituta pra ficar com o adulto, daí eu cuido do meu filho em paz’”. Há muitas coisas nessa resposta, claro, inclusive o dichote pra quem se meteu onde não foi chamada. Mas desde antes e até hoje, a certeza de que contratar uma "mãe substituta" (é isso, no final) ou ser uma delas, é algo de uma complexidade da qual não damos conta, em nenhuma língua ou localização geográfica. Au pairs e baby sitters, estadunidenses e européias, também são vítimas e algozes em problemas graves 

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Quando eu é que fui a "babá", confirmei cada detalhe do que impossibilita saúde nessas relações, apesar de ter amado bastante dois dos meus pequenos clientes. A maioria era "ganhar um cachê" mas os "caracolinos", hoje adultos, ainda estão em mim, assim como a sensação de que o que eu dava a eles devia permanecer guardado para o filho (ou filha) que, um dia, eu viria a ter. Porque é íntimo e profundo demais. Nenhum dinheiro paga colo, olhos nos olhos e cantigas de ninar. É sempre um pouco roubo. Por melhor que seja o contrato assinado, por mais afeto que se tenha - e eu tinha - pela família que contratou, é sempre vender o que não é vendável. Será que todo mundo consegue elaborar esse sentimento? Não acho.

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Por mais que você conheça uma ou outra história bonita, o fato é que não existe amor entre mães e babás. Há respeito pelas mútuas necessidades, no máximo. O que sobra é pepino, sintoma, problemas dos mais variados, construções emocionais estranhas, mágoas, muitas coisas embaixo dos tapetes daquela intimidade. Quanto mais eu vivo, mais tenho certeza de que babá é um negócio que se deve evitar tanto ser quanto contratar. Vamos parar de fingir normalidade e cobrar o que funciona: licenças prolongadas (maternidade e paternidade), creches gratuitas de qualidade e participação efetiva dos pais. Fora isso é remendo, abuso e risco. Fato.